sábado, 28 de dezembro de 2013

Cartas na Rua - Charles Bukowski


Cartas na rua foi o primeiro romance lançado por Bukowski, sua primeira edição no Brasil saiu em 1971, depois a brasiliense comprou os direitos do livro e lançou uma nova edição em 1983 e finalmente, em 2011, a L&PMPocket comprou os direitos e lançou a edição mais recente. Imagino que a fama de Charles Bukowski não era muito grande durante os tempos da ditadura, e para alguém que nasceu nos anos 1990, conseguir esta primeira obra não foi tarefa fácil. Neste ponto a L&PM faz um bom trabalho lançando obras a um preço acessível (quanto você gasta em cerveja no boteco sem reclamar?) e é a editora que vêm publicando quase tudo do velho Buk.
Parece que isso não ocorre devido a alguma cruzada cultural, sejamos sinceros, Bukowski vêm ganhando cada vez mais espaço entre os brasileiros, logo é um bom negócio garantir todos os setores do mercado. Amamos sua prosa e desconhecemos seus poemas, mas isso não nos faz menos fãs. Creio que seu sucesso vêm pelo simples fato de abordar os delírios cotidianos, brigas medonhas com o vizinho ou com a mulher, bebedeiras em bares sujos e baratos apinhados de bêbados desempregados ou em empregos horríveis. Toda cidade tem seu templo do álcool, é fácil se identificar. Charles Bukowski traz toda essa experiência para sua literatura e nos deixa fascinado, seu ritmo é igual ao ritmo das ruas.
Entretanto percebo que as pessoas se focam muito numa imagem de sexo, drogas e rock'n'roll em seus livros, mesmo que ele deixe claro que odeia rock e qualquer coisa que não seja Mahler, Bach ou Chopin. Sua bebedeira não passa de desespero com o mundo que vive, Bukowski não é nem um pouco iludido com essa realidade, e talvez esteja ai o ponto chave de nosso fascínio com o autor. O que ele deseja sempre é algo simples, seus momentos mais felizes nas histórias sempre são com boa comida e boa casa, sossego, por mais estranho que seja. Não há um grande idealismo em seus escritos, pode haver muita erudição não explícita (parece que ele odiava sujeitos que vomitam sua erudição em conversas, blogues e etc), mas sua desilusão é o ponto chave. Chinaski não quer mudar o mundo, não quer fazer a engrenagem continuar girando.
As aventuras sempre ocorrem em questões cotidianas, principalmente na luta por estar vivo. O bizarro é que, mesmo declarando toda sua aversão ao trabalho, é normal boa parte da trama ocorrer neste espaço que mais ocupa nosso tempo acordado. Sua descrição em cartas na rua nos obriga a pensar no regime com que as pessoas nos correios trabalham, coisa que sempre esquecemos quando compramos nossos lindos produtos pela internet e ficamos desesperados esperando que cheguem logo, esquecendo que são pessoas que fazem todo aquele serviço pesado – e como pesa carregar papel!
Sua subversão está em não aceitar o óbvio, e alguém precisa nos dizer isso.
Dai que vejo um lado em seus escritos, pouco claro e confuso, em relação ao machismo nosso de cada dia. Seus heróis amam mulheres, por mais que seja de uma forma carnal, não se nega paixão alguma por elas. Até ai tudo normal, isso se percebe em Goethe ou Dostoievski, mas em seus escritos há algo lindo que deveríamos tentar praticar mais, Chinaski não tenta prender ninguém, nenhuma mulher é uma posse dele, elas estão com ele, enquanto assim quiserem. Seus personagens não são possessivos, podem ser estúpidos, mas evitam possuir pessoas, este ato pode nos salvar do fascismo. Em alguns pontos seus escritos são tremendamente estúpidos e estão longe de terem ares feministas, porém ele evita ser o machão, na verdade até mesmo zomba deste tipo garanhão. Seus personagens, assim como a maior parte de nós, não são machos alfa e amamos ver que não existe nada de errado nisso.


segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Idea: a evolução do conceito de belo - Erwin Panofsky


 Estética é uma palavra chique, “tá na boca do povo” quando se quer discutir o belo e a beleza. Até mesmo os salões de beleza vêm mudando seu nome para salões ou clínicas de estética. Uma discussão mais séria reconhece que a concepção de beleza não é única, que ela pode variar entre duas pessoas, mas não para por ai. Não devemos cair nessa armadilha semântica da palavra subjetividade e acreditarmos que meu eu é único e surge como que de um nada original único, misterioso e exato feito a existência de Deus, de alguma forma Foucault já nos alertou sobre isso. Mesmo assim, por incrível que pareça, não diminui-se em nada a concepção estética de cada um, ela continuará existindo, será ainda assim particular a cada um. Porém existem pontos em comum.
Antes de acharmos ou vermos algo belo nós o imaginamos, definimos seus contornos em nossa mente, formamos sobre a beleza uma Ideia. O artista pensa sobre a criação antes de criá-la. Desta Ideia surge nosso senso estético, que servirá tanto para julgar quanto para criar – ou destruir – algo. Ou seja, antes de vermos ou julgarmos o belo e o bom, nós o imaginamos, pensamos. O primeiro lugar de pensamento estético é abstrato, depois partimos para obras e situações reais. Um exemplo pode ser o uso de drogas, tal qual foi feito por Baudeleire, que é um ótimo exemplo, pois o uso de substâncias feito por Baudeleire tinha objetivos e intenções completamente diferentes do de várias outras pessoas que também consomem ou consumiram as mesmas substâncias. Logo, não é o uso de uma substância que definirá seu senso estético, mas seu senso estético que interfere na sua experiência. Uma pessoa que viu um quadro surrealista não é necessariamente admirador da estética surrealista. É necessário todo um preparo e abstração, uma composição de ideias para a formação de um senso e opinião estéticas.
Neste sentido as pessoas tem um processo de desenvolvimento individual particular, o que não leva dois irmãos, por exemplo, a terem os mesmos gostos e opiniões, seja sobre política ou estética. O desenvolvimento estético inicia antes da experiência, seja da aventura ou da contemplação de uma arte. É a partir da Ideia que se estabelece no campo abstrato, que ela refletirá num campo mais tátil e material: a exemplo da escolha entre um filme russo ou brasileiro, assim como torcer o nariz para uma música e dançar outra. Estes processos, por mais que sejam criações mentais, não são falsos, eles existem, tem sua materialidade, uma careta de desagrado tem seu peso real. Não se nega em momento algum da particularidade de cada ser, só é impossível investigá-las individualmente.
O ponto tátil que podemos lidar nisto tudo acaba sendo o tempo e espaço compartilhado por todos. A família de um sujeito é diferente da de outro, o que já implica diretamente numa formação diferente para cada um, porém ambos os indivíduos estão cercados pela história, afinal é este um chão que temos para nos apoiar. Como partimos dela e nos movimentamos com o tempo, ela deixará marcas em nós, muitas vezes contra e muitas vezes em consentimento com nossa vontade, tal qual cicatrizes e tatuagens. Partindo disto, a concepção de beleza pessoal de cada um, passa pela formação de uma Ideia estética. A formação de concepção estética, desta Ideia, deste senso, tem uma relação direta com nosso tempo. Não fosse por isso ela seria sempre a mesma, e não é, já que o ser humano não é um ser atemporal. A exemplos dos salões de beleza e as clínicas de estética, a palavra clínica traz todo um peso médico para a questão do belo atual, de saúde, de normatização do corpo, isto só pode ser compreensível num período marcado pela biopolítica e controles normativos sobre o corpo e uma sociedade ainda marcada pelo machismo. O senso estético dessas clínicas só pode ser possível neste quadro histórico. A mesmo vale para a experiência dos shoppings centers, possível apenas no mundo da via-expressa descrito por Marshall em Tudo que é sólido desmancha no ar.
A modernidade está em constante transformação, e é também uma experiência estética, pois antes mesmo de ser posta em prática ela foi pensada. As teorias tem por fim a prática.


quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Solaris - Stanislaw Lem


Stanislaw Lem pretendia utilizar a ficção científica como um lugar de debate. Se pegarmos clássicos como Orwell, Huxley e Dick, podemos perceber que a discussão sempre está ali, seja de nossa sociedade ou seja de nossa existência. Por isso o autor demonstra sem nenhuma timidez seu conhecimento enciclopédico, afinal, mais do que uma boa história ele desejava algo mais. O gênero Romance possui este caráter didático.
Pode parecer contraditório, mas desde que o Homem ocidental trocou a Terra pelo Sol no centro do universo, os estudos humanos cresceram e tomaram o exemplo do homem vitruviano de Da Vinci usando o ser humano como a forma de todas as medidas. Apesar de aceitarmos a posição do Sol, este deslocamento espacial está ligado a um deslocamento antropológico: nós somos o centro, somos a imagem e semelhança de Deus, somos os donos do mundo. Junto com o sol, os cafés começam a ter mesas cada vez menores, algo muito distinto daquela mesa grande onde todos se sentavam apenas buscando um lugar vago. Da mesma forma que em cafés, independente do lugar ocupado, o ego observador e julgador, seria a medida das coisas – o normal – neste flaneur.
As explorações espaciais quando do lançamento do livro (1961) eram ainda algo novo, porém a exploração do espaço sempre foi algo fascinante, e de certa forma nos desloca deste centro imaginário que acreditamos estar. Desde que estas aventuras espaciais começaram não deixamos de perguntar se existe vida fora da Terra. Certa vez li um declaração de Carl Sagan dizendo que seria muito esnobe acreditar que em toda esta vastidão do universo, que ainda não conseguimos entender ou desvendar direito, somos os únicos abençoados com o dom da vida. A afirmação de Sagan é clara em afirmar ironicamente que existe sim vida fora da terra. Como ela é? Bem, Solaris parece discutir isso, e provavelmente esta vida estaria bem longe de qualquer forma de vida existente na Terra. Aqueles extraterrestres humanoides que aparecem nos filmes, pode esquecer eles. Solaris é o ponto chave nisto tudo, é um planeta ou um ser-vivo? Tudo indica que o Oceano de Solaris tem vontade e não apresenta comportamento regular, como a Terra e suas estações do ano.
Apesar das incertezas sobre o planeta, pois em momento algum fica claro o que seria Solaris, e o termo ser-vivo parece ser o mais exato, mesmo não sendo uma resposta concisa. Quando imaginamos uma forma de vida além da humana, o Homem Vitruviano aparece em cena como a medida de todas as coisas e imaginamos seres semelhantes a nós, e Solaris acaba demonstrando que isto é um belo engano. Solaris seria uma forma de vida inteligente e completamente diferente que qualquer outra coisa já vista pelo Homem. A Solarística citada no livro é a ciência que tenta estabelecer contato com Solaris. Este último por sua vez sempre fica ignorando aqueles sujeitos minúsculos na estação.
O que me chama a atenção é o caráter psicológico da trama. O personagem principal seria um psicólogo, o planeta é envolto por um Oceano (termo freudiano), e os visitantes que surgem no livro são pessoas ligadas a questões puramente intimas, guardadas na profundeza do consciente de cada um dos personagens. Estes visitantes por sua vez se parecem fisicamente com os humanos, mas os exames feitos por Gibariam comprovam que nada mais são do que moléculas, ou seja, não possuem órgãos, funções vitais (não morrem ao ingerir oxigênio liquido por exemplo) e por isso não sentem fome. Mas o medo, a solidão e o pensamento estão presentes. Há uma certa independência por parte dos visitantes, nada excepcional, mas que se desenvolve com o tempo. Rheya não gosta de saber o que ela é.
Por fim o grande questionamento é justamente este de nos acreditarmos a medida de todas as coisas, que devemos aprender a respeitar outras formas de vida que não a nossa. Boa parte dos argumentos para o consumo de carne, por exemplo, se justificam sobre este especismo. E quando nos deparamos com uma forma de vida diferente da nossa, e que pode ser tão poderosa a ponto de sondar a nossa mente até os lugares mais profundos, ficamos sem reação. Talvez o homem deva descer desta estação espacial imaginária e aceitar que diferentes formas de vida também existem e são conscientes. Fico em dúvida se a ideia final é a de que podemos nos perder em nossas próprias criações, já que toda confusão vêm do subconsciente dos cientistas daquela estação. Todavia as minhas reflexões sobre Solaris não estão consolidadas – e talvez nunca estejam. Infelizmente Stanislaw Lem é um autor praticamente ignorado fora da europa central e terras mais ao leste.

domingo, 1 de dezembro de 2013

O queijo e os vermes - Carlo Ginzburg


De forma geral existe toda uma série de fatores ao nosso redor formando nossa subjetividade. Nosso ser é único, sempre será, porém compartilhamos de muitas experiências em comum, e elas, da mesma forma que as pessoais (como nossa criação, a escola onde estudamos, nossos amigos), enquanto experiências coletivas também são importantes. Estamos inseridos num tempo e numa sociedade. Nascer no Rio de Janeiro da segunda metade do século XIX implica em questões diferentes da de nascer no interior do estado de Santa Catarina no final do século XX. Outro tempo, outras questões, outras subjetividades. Não podemos esquecer dos elementos que nos cercam.
Entretanto cada sujeito é um ser, e por isso devemos ser cautelosos ao abordarmos a existência humana – até porque se fosse assunto fácil não usaríamos tanto de nosso tempo discutindo isso. Apesar de haverem estas experiências compartilhadas, os efeitos não são necessariamente sempre os mesmos. A exemplo de um certo livro numa certa biblioteca, nem todos que o lerem terão a mesma impressão ou conclusão, cada sujeito faz a sua própria interpretação de mundo. Curioso é lidar com situações que escapam do que supúnhamos ser uma margem de erro e improbabilidade.
A sedução de Ginzburg pela fonte base do livro, um processo inquisitorial sobre um moleiro alfabetizado com sua própria forma de conceber o universo, a religião e o mundo, escapa de nossas expectativas referentes a este tempo, um sujeito externo as classes privilegiadas que sabe ler e escrever, compra seus livros (algo muito caro para época) e os interpreta! O curioso é que seus conterrâneos o denunciam para o Santo Ofício, iniciando assim seus problemas.
A princípio tudo o que ele queria era poder falar para pessoas dispostas a ouvi-lo e responde-lo. Podemos perceber nisto tudo uma vontade de aprender a desenvolver suas teorias. Entretanto nada disso estava nos planos da Santa Igreja. Com o surgimento da Igreja Luterana os católicos estavam desesperados e intensificaram muito sua caça as bruxas e hereges – mais do que nos “sombrios” tempos da Idade Média. A Igreja Católica percebeu que as ideias eram perigosas, afinal, tantos concílios para padronizar a concepção de cristianismo provam isso. Menocchio desenvolvendo sua própria teogonia, entraria em conflito direto com os interesses Católicos. O questionamento é sempre mais libertador do que a resposta, mas para isso um preço precisaria ser pago. Logo temos um sujeito incrível, que não se contenta em apenas aceitar o mundo ao seu redor, como procura também dialogar com ele, porém seu tempo é marcado pela perseguição católica aos hereges, bruxas e afins.
Podemos indagar uma questão no caso trabalhado por Ginzburg que é problematizada por Plekhanov e se mostra relevante atualmente: até onde pode um indivíduo afetar a história? Ou seja, quão relevante é um indivíduo para as delimitações de um tempo? Não devemos cair num simplismo e inocência colocando a estrutura e o sujeito em lados opostos e verificarmos qual pesa mais na balança da história. Ocorre uma troca constante entre ambas as partes, já que uma estrutura é sustentada pelos sujeitos que vivem nela e a estrutura sustenta a sociedade em que vivem estes sujeitos. Quem faz e mantém uma estrutura funcionando são as pessoas, não há dúvidas quanto a isto, entretanto até onde a vontade de um sujeito transforma a sociedade? O que podia um pobre moleiro italiano contra a inquisição? E ao mesmo tempo, quantos moleiros foram queimados para que a inquisição (e o poderio da Igreja) acabassem?
O que devemos ter em mente quando pretendemos estudar algum momento histórico são duas coisas básicas: uma delas é que existem uma série de questões cercando o sujeito, em especial seu tempo e sociedade, outra é a de que nem todos os sujeitos aceitam muito bem este julgo que recai sobre a formação do ser. Onde há poder, há resistência. E como pergunta final deixo, como mudar uma estrutura sem entendê-la? Até onde é possível...?

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

A função do orgasmo - Wilhelm Reich


O sexo é algo que todos fazem e têm, mesmo que você esteja faz muito tempo em abstinência (voluntária ou não), ainda “não tem idade” ou seja lá qual for o motivo, você pelo menos uma vez na sua vida “se tocou”, ou irá fazer tudo isso. Sexo está ai, é feito faz muito tempo e continuaremos fazendo. Nenhuma novidade nisso tudo.
Entretanto as diferentes temporalidades implicam em diferentes relações sexuais, os movimentos básicos podem ser os mesmos, mas a interpretação do ato nunca o foi, fazemos sexo e os gregos antigos também, mas não fazemos como os gregos antigos. Reich escreve de um tempo, que deve ser sempre levado em consideração ao lê-lo. Seu livro “A função do orgasmo” não vai te ensinar como fazer mais e melhor sexo, todo que ele faz é abordar este assunto de maneira séria. Na verdade “A função do orgasmo” é uma explicação de seu processo cientifico, sua pesquisa, que indica o orgasmo como a característica mais importante para uma existência em paz consigo e saudável. Wilhelm Reich deixa claro as dificuldades de seu tempo, uma delas era tratar da questão sexual com seriedade. Como já ilustrado em “Escute Zé ninguém”, Reich era constantemente xingado de pervertido para baixo.
Para entender Reich é importante seu tempo, falamos dos “tempos sombrios” (entre guerras), de um lado o modelo liberal democrático em decadência, de outro o stalinismo (que apesar de não estar colocado de forma clara, já demonstrava seu caráter autoritário) e surgindo como opção temos o nazismo – visto com bons olhos pelos liberais-democráticos. Nada promissor não é mesmo? Além disso estamos falando dos primeiros estudos sobre a sexualidade humana, logo é compreensível o constante ar repressivo nas entrelinhas. Há sim, até hoje uma repressão sexual, em especial com as crianças e jovens, desde a mão boba até coisas mais concretas como beijos e atos sexuais. Afinal, o que determina a idade certa para o primeiro ato sexual? A menstruação? A descoberta da ejaculação? Óbvio que por um lado temos toda uma pressão sobre a prática do ato sexual, que já ocorria nos tempos sombrios, onde o garanhão ganha um certo status. Por isso não podemos resumir a libertação sexual a prática sexual. Os chamados pervertidos não são bem resolvidos sexualmente, e olha que tudo indica que eles praticam sexo, certo?
Uma coisa simples que Wilhelm Reich coloca é que a relação sexual deve ocorrer de maneira satisfatória: ejaculação precoce, constante insaciedade (ninfomania), satisfação pela violência, perfil de garanhão, são indicativos de pessoas que praticam o sexo, mas acabam, segundo Reich, não atingindo o orgasmo. A ejaculação precoce é uma decepção para ambos os lados, não precisamos de nenhum estudo cientifico para isso, é a pura e simples ejaculação antes da satisfação sexual completa (orgasmo). A insaciedade seria causada por alguns motivos, os principais são nunca atingir o orgasmo e até mesmo um recurso de ganhar atenção. A satisfação pela violência (sexo violento, como por exemplo vários vídeos pornôs atuais, ou até mesmo casos mais críticos como prazer na dor alheia ou estupro), indicariam um desejo de alcançar o orgasmo, porém este desejo é tão grande e confuso que acaba causando uma tensão que reflete no físico da pessoa. Na tentativa de romper esta tensão atos violentos são a expressão mais comum (vontade de explodir), e algumas vezes até mesmo uma repulsa, “nojo”, do ato sexual. É bom colocar que uma certa tensão pré ato sexual é normal, porém algumas pessoas não conseguem realizar um ato sexual satisfatório – seja pela repressão, impedindo-o, como pelo sexo sem um desejo sincero (algo como sexo sem um sentimento de carinho) – e acabam ficando tensas. Esta tensão ocorre desde uma musculatura dura, tensa (você já deve ter visto alguém ou ficado assim), até o prazer em atos violentos sem sentido ou atitudes grosseiras durante o ato sexual. O perfil do garanhão, do “pegador”, já é o ato sexual pelo seu status, em especial para os homens, e não pelo prazer do ato, isto leva a um ato mecânico e sem prazer – e ejaculação não indica que você chegou ao orgasmo, vide o exemplo da ejaculação precoce.
São inúmeros casos abordados por Reich ao longo de sua obra e é impossível colocar tudo aqui, até porque não sou a pessoa mais indicada para isto, pretendo apenas iniciar uma discussão e jogar algumas palavras ao vento – o que no caso da internet é colocar uma carta na garrafa e soltá-la no mar. O que ocorre é que Reich trata a sexualidade como um problema sério e social. É necessário garantir as pessoas uma boa relação sexual, ajudá-las a isso, afinal de contas é uma de nossas angústias. Por vários e vários motivos nossas relações modernas influenciam nosso ato sexual. E com a liberal década de 1970 já na história e o sexo antes do casamento consolidado como normal, podemos acreditar que nossa relação alcançou a perfeição ou está próxima disso. Não é um sentido de nostalgia que deve ser buscado aqui (longe disso!), mas sim entender que nossa relação com o sexo ainda tem seu caráter repressor, mesmo que já não seja a mesma repressão sofrida por Reich. Na internet são comuns vídeos roubados da intimidade de alguém e a constante intromissão na vida sexual das pessoas (desde comentários bestas como “ela provocou”, “vagabunda”, até os homofóbicos). Há também uma cobrança para que todos sejam garanhões e “garanhonas”, deveríamos estar falando de boas relações sexuais, que nos deem satisfação, sem manuais, sem regras e não de quantidades de sexo. Como vi uma estudiosa da sexualidade dizendo, atualmente o sexo é de massa, e deveria ser pessoal, íntimo afinal. Parece que este é o desafio, relacionar-se sem regras, entender o ato sexual e o amor como movimentos de libertação, de negação da sociedade que vivemos.

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Robinson Crusoé - Daniel Defoe (adaptação)

Definitivamente adoro livros infantis, e o fator que me impede em compra-los é simples, acabam custando caro para o hábito de leitura que tenho hoje. Como eles têm muitas imagens coloridas, acabam encarecendo (tinta, papel, ilustrador, tudo isto custa!), e talvez por isso muitos pais evitam investir dinheiro nisto. Meu pai por exemplo vivia me recomendando a biblioteca pública ou da escola, enquanto por outro lado eu procurava deixar bem claro que eu queria o livro pra mim, queria ter ele na minha mão e na minha estante (burguesinho não?).
Desde que li o texto de Walter Benjamin sobre os livros infantis, minha atenção sobre eles se fez presente sempre que possível. Revirando agora minha estante, do limbo retirei este livro da companhia das letrinhas que é uma adaptação para as crianças do famoso livro de Daniel Defoe. Hoje em dia percebo que o livro é muito bem feito, seu papel é bom e está recheado de imagens, além de que nas bordas temos várias explicações sobre coisas da época como: costumes, roupas, equipamentos, geografia. O fantástico é que traz mais do que a história adaptada, ela é toda contextualizada, de maneira simples e direta (crianças afinal, não desejam se aprofundar com vistas numa carreira acadêmica). Imagino que todos estes elementos faziam com que o livro custasse caro, e por isso tive que pedi-lo de natal. Junto ganhei a edição de o Médico e o monstro, da mesma coleção.
Lembro que o livro já abordava questões básicas da obra, lhe ajudando a interpretar. Elemento ótimo, que incentiva a fazer mais do que ler uma história, mas procurar buscar algum sentido nela – mesmo que este sentido seja só seu. Pelo que me recordo, possuí durante muito tempo a crença de que se poderia viver isolado da civilização, da mesma forma que em algum momento da minha vida passaria por uma grande aventura (tal qual Crusoé). Por essas e outras naquela época já ficava de olho nas editoras dos livros e adotei a companhia das letras como uma das minhas editoras favoritas, pelo que vejo eles sempre procuram manter um trabalho de qualidade em seus livros.
Este livro me gera um carinho especial, pois foi por meio dele que me iniciei em definitivo no mundo das letras. Recordo que enquanto passava o verão na praia e lia o livro, meu amigo me chamava para brincar e escutava de mim: “espera um pouco, só vou terminar de ler”, ele insistia para que eu fosse e eu dava a mesma resposta, por fim ele enfatizou: “vamos, ler é chato!”. Pode ser que me senti mal na época por ser chamado de chato pelo meu melhor amigo, mas prefiro acreditar que dei uma risadinha e fui brincar.

domingo, 20 de outubro de 2013

Estruturalismo: Antologia de textos teóricos - Eduardo Prado Coelho (org.)


Ou, Para Ler o estruturalismo

Durante minha formação acadêmica as palavras estrutura e estruturalismo, apareciam junto a seus derivados de maneira recorrente. Autores como Lévi-Strauss, Lacan, Sartre, Barthes, Derrida, Foucault e outros associados em maior ou menor grau ao estruturalismo eram e continuam sendo recorrentes. O uso da palavra estrutura para definir mais do que alguma questão arquitetônica, ou seja, física, é usado constantemente e parece não despertar grandes dúvidas. Toda vez que se procura explicar alguma questão social, mesmo por pessoas fora dos círculos acadêmicos, expressões como “família desestruturada”, “falta estrutura emocional”, “não houve uma estrutura na formação do caráter”, procuram determinar aquela situação ou sujeito. A indagação pessoal surge quando começo a estudar as cidades, o que coincidiu com as notícias da Copa do mundo no Brasil. Começou-se uma corrida pela “estruturação” do país. Podemos perceber que desde a implantação de questões urgentes como o transporte público até a criminalidade, começaram a passar por algum tipo de estruturação ou re-estruturação. O uso dessa palavra está associado a muito mais do que uma questão arquitetônica. Antes de continuar, vale lembrar de que a arquitetura é afinal de contas uma ciência que têm como objeto o homem, já que é ele quem vai habitar e produzir aqueles lugares, aquela estrutura. Com estas questões postas, ler o estruturalismo hoje de uma forma consciente possa nos ajudar. E sobre isto é importante deixar claro que a intenção aqui não é resgatar o estruturalismo, mas sim entender um pouco melhor o que foi isto.
O estruturalismo será a grande teoria do pós-guerra. Autores sem fim se associam em menor ou maior grau a este bastião teórico. O curioso é que não existe uma definição muito lógica do estruturalismo. O conceito mais próximo é a estrutura no seu sentido arquitetural, aquilo que sustenta, que dá a base para todo o resto da construção. Em alguns autores esta questão parece mais rígida, como se uma grade procurasse definir as formas, e para outros nem tão definida e determinante. Ocorre que é nítido após a segunda-guerra mundial um uso cada vez maior desta coisa que é o estruturalismo. Segundo aponta François Dosse1 a arregimentação dos intelectuais em torno deste aporte teórico ganha magnitude após a supressão da revolução húngara de 1956, onde o modelo socialista-soviético-stalinista é posto em xeque e começam a buscar uma alternativa ao marxismo, doutrina oficial do Partido Comunista Francês ao qual estavam associados (formal ou informalmente) vários estudiosos franceses.
Apesar da vertente marxista do estruturalismo, representada principalmente por Althusser, Karl Marx deixa de ser uma noção essencial para aquela época. É visível um forte apego aos estudos de Marx após a Segunda Guerra em especial pelas necessidades e questões postas por este momento histórico, dentre elas o nazismo, porém a revolução húngara traz novas necessidades. Mesmo com este abandono do marxismo (do qual somos herdeiros cada vez mais sinceros) não podemos ignorar que pelo menos um pouco do conceito de estrutura vêm deste pensador alemão. É comum indicar as origens do estruturalismo nalguma coisa entre Saussure e Marx.
Mesmo sem uma grande leitura deste autor tão conhecido, podemos perceber realmente que ele traz algumas questões estruturais. Alguns elementos da exploração capitalista descrita por Marx ainda hoje servem tão bem que muitas vezes esquecemos de historicizar sua teoria e perceber que nosso tempo já é outro – e sim, ainda somos explorados, porém não da mesma forma que no século XIX. O marxismo, talvez mais do que o próprio Karl, nos trazem algumas questões chave que parecem determinar nossa sociedade. É por este caminho que Lévi-Strauss se embrenhava quando começou a aventura estruturalista2. O que este francês formado em filosofia, porém que se descobre antropólogo nas matas brasileiras, propõem é buscar princípios norteadores do homem. É uma questão muito científica e direta: “a estrutura é coisa diversa do que eu denominei por organização, mas também que ela nos dá a chave de um funcionamento”3. Desde Lévi-Strauss há esta que parece ser a única definição do que é o estruturalismo, uma busca pelos elementos chave da sociedade (por isso a dívida com Marx), e estes elementos são diretos ao Homem.
Não se viam enquanto um movimento determinado, muitos autores inclusos neste rol de autores se autoexcluem e não existe um método ou teoria definido e perceptível em comum entre todos os chamados estruturalistas. O que é fácil perceber é que eles, seja um linguista ou um antropólogo, buscam compreender e identificar os pontos chave da sociedade. No caso de Lévi-Strauss teremos o famoso caso do incesto, tabu visível em toas a sociedades. Enquanto antropólogo, ou seja, de estudar o Homem enquanto espécie, Lévi-Strauss identifica um elemento comum ao homem, algo que compõem sua estrutura em todas as sociedades – logo a todos os homens.
Não é fácil falar sobre este movimento, tão claramente visto como importante, mas deixado a distância. Ninguém mais aceita ser chamado de estruturalista, entretanto lemos vários autores que já receberam esta nomenclatura em algum momento. O que ocorre e fico com a herança mais forte deste mote teórico é a crença em elementos estruturais para com o homem, seja as instituições (escolas, prisões, sanatórios, etc), sejam os costumes (burgueses, machistas...), a própria arquitetura (panóptico como o exemplo mais claro) ou este turbilhão indefinido que se chama cultura, há pontos chave nestes elementos tão respectivos ao homem. Entretanto o grande crime dos estruturalistas foi apostar muitas fichas no peso desta estrutura, quando elementos que vão desde o indivíduo até as rupturas existem e acabam levando a estrutura para segundo plano. Não acredito que precisamos retornar ao termo, mas sim saber que seus reflexos ainda estão ali. Pois segundo tudo indica usamos mais do que a palavra, também somos herdeiros desta linha de pensamento, mesmo não o usando mais.
1DOSSE, François. História do estruturalismo, v. 1: o campo do signo, 1945-1966. São Paulo: Ensaio; Campinas, SP: editora da universidade Estadual de Campinas, 1993.
2O próprio Claude Lévi-Strauss fora um assíduo leitor de Karl Marx durante seus anos de juventude. O mesmo se põem para praticamente todos os membros fundadores da escola estruturalista, para mais detalhes ver: DOSSE, François. História do estruturalismo, v. 1: o campo do signo, 1945-1966. São Paulo: Ensaio; Campinas, SP: editora da universidade Estadual de Campinas, 1993.
3POUILLON, Jean. Uma tentativa de definição. In: COELHO, Eduardo Prado (org.). Estruturalismo: antologia de textos teóricos. Lisboa: Protugália editora, 1968, p. 13.


segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Elysium - Neill Blomkamp (dir.)


Elysium não surpreende muito. Os clichês de Hollywood estão ali, a historinha de amor, o herói que nunca morre, os vilões e os mocinhos claramente demarcados e o destino da humanidade em jogo. Sabemos como começa e como termina a narrativa. É um filme hollywoodiano afinal.
Porém alguns detalhes aparecem ali que acabam tornando Blomkamp uma novidade. Ele alcançou sucesso suficiente para entrar no clube americano do cinema depois do lançamento de Distrito 9. Pra quem não sabe, Blomkamp é sul-africano, e isso implica nas pequenas diferenças. A primeira delas e que pode até causar alguma empolgação, é que mais do que uma simples divisão entre bonzinhos e malvados, a sociedade futura ilustrada no filme é segregada entre ricos e pobres. Os pobres são condenados a uma vida miserável, sem grandes perspectivas e o mais importante, ficam de fora do clube saudável exclusivo para quem pode pagar pela eternidade e beleza. Independente da posição ou objetivo de Blomkamp, ele não maquia em nada a segregação financeira existente no mundo. Talvez pelo fato de ser da África do Sul, seja quase impossível ignorar esta questão.
As outras questões menores, porém significativas, tangem a questão da produção. No filme, mesmo que de maneira tímida, outras línguas são faladas, mesmo o inglês se mantendo o principal idioma, é aberta uma brecha para outras línguas. Pode parecer bobo, mas o termo “bárbaro”, tem origem numa questão linguística, mesmo que tal adjetivo esteja delimitando uma condição cultural. Uma língua implica numa cultura, numa forma de pensar, me arrisco até em colocar, uma outra estrutura. Talvez por isso os comentários comuns de que a atividade filosófica só possa ocorrer em língua alemã – o que discordo. Colocando estas outras línguas, o filme deixa de maneira mais clara de que além das diferenças econômicas, também existem as culturais. Se pensarmos isto a partir do fato de que é comum nos EUA remakes de filmes europeus pelo simples fato da maior parte da plateia estadunidense não gostar de filmes em língua estrangeira, demonstra de forma clara como um país lida com a cultura de outro povo.
Por esta ótica a grande resistência dos islâmicos é em aceitar um modelo cultural tão diverso do seu, e se apegar a religião acaba sendo uma forma de se apagar a uma identidade, de preferência uma que seja mais prática para a realidade visível. Se houvesse uma postura mais pluricultural, talvez tensões desnecessárias seriam evitadas. Não podemos ser demasiado otimistas, pois cair no relativismo cultural pode ser perigoso também.
O que temos afinal de contas em Elysium é um filme hollywoodiano que procura dialogar com outras linguagens. A contratação de atores de vários países, a aparição (mesmo que discreta) de outras línguas, a não negação da ainda existente divisão entre ricos e pobres, fazem com que exista neste filme uma maquiagem não tão carregada para falar de nosso tempo. Talvez por isso seja estratégico situar tais problemas numa ficção científica. No fim das contas Blomkamp consegue seu sucesso pelo fato de não ignorar os problemas de seu tempo.

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

O Aleph - Jorge Luis Borges

Borges escreve isto que chamam de literatura fantástica. Segundo minhas impressões constituídas sobre o assunto, este gênero parece não ter uma definição rígida, mas elementos são percebidos conforme uma leitura se desenvolve. O mais interessante é que por meio destes textos claramente longe do real, teorias são discutidas e parecem se explicar e debater ali.
É recorrente uma ambientação imaginária. Lugares que só existem em seus contos se misturam com lugares reais. A questão mais estranha é que estes lugares, sejam reais ou não, existem dentro dos contos. Talvez em vez de questionarmos a realidade destes contos, seja mais interessante aceitar que eles querem existir ali e naquele momento, quase como se as coisas tivessem vontade.
O conto mais forte é o do título: “Aleph”. Sem buscar qualquer forma mirabolante de qual sequência deve ser respeitada para ler o livro, fico com a simplicidade de seguir a leitura pela ordem das páginas. Por este caminho o último conto é estratégico. Por meio de uma dobra, um único ponto, é possível vislumbrar todo o universo.
Conforme caminhamos pela cidade, um dos lugares comuns do homem moderno, podemos observar entre o aço e concreto, vários pontos, vários universos possíveis. Me refiro a eles desde as ruelas, bares, cafés, praças, lojas e outros furos que se propõem a interromper o trânsito – de pedestres ou motoristas. Se você passar por um caminho diferente pode, por exemplo, trombar com alguém, ser assaltado, descobrir um novo bar, chegar mais rápido. Estes lugares físicos podem nos levar a outros lugares como a felicidade, o amor ou a tristeza.
Lugares são sempre transitórios, o ser humano não fica parado, se move, constantemente, porém, visita os lugares, e está ali quando se está ali. Igual moedas perdidas pela calçada.
Da mesma forma que o longínquo, e fora de realidade, espaço parece ter suas dobras devido aos buracos negros, algo tão insignificante como o cotidiano citadino também pode desdobrar-se. E mesmo que nossas sensações nos levem ao conhecimento de que tudo aquilo é verdade, as possibilidades se mostram tão impossíveis que a matemática por meio da probabilidade consegue explicar com exatidão apenas isto, o possível é imprevisível. Cada dobra, cada buraco, cada ponto pode revelar todo um universo.

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Os cus de Judas - Antônio Lobo Antunes


Portugal faz parte do clube dos últimos países a perderem suas colônias na África. Curioso que não estamos falando de um país importante como Reino Unido ou França, mas sim de Portugal. Boa parte da honra em manter aquelas colônias africanas estava no desejo de agarrar alguma coisa num passado já tão distante que nem parece algum dia ter existido: as grandes navegações.
Mesmo fazendo já muito tempo que os portugueses se lançaram ao mar, havia no regime de Salazar um uso muito forte desse passado. Este é o alerta para quem se interessa pela história, ditadores não cessam de se voltar para ela. Se agarram, se prendem, choram e conclamam poemas pelo passado, pretérito invisível, que ninguém vivo jamais viu. Pelo que percebo Salazar ainda é uma ferida para os portugueses, assim como os militares ainda são para os brasileiros.
Como ignorar a ditadura de Salazar e sua postura insistente com suas colônias? Havia pouco diálogo, algo possível de se notar pela educação recebida nas colônias, onde aprendiam que eram portugueses e na aulas de geografia, por exemplo, aprendiam quais eram os principais afluentes do rio Tejo... Acredito que podemos ver neste passado colonial não tão distante de Portugal alguns aspectos para entendermos o terceiro mundo e até mesmo a importância da existência de um país como a União Soviética – apesar dos pesares.
Temos um português dialogando com esta ferida, não alguém dali. Aos poucos o livro vai ganhando cada vez mais contornos anti-Salazar. Podemos não perceber devido a certos julgamentos, mas eles estão ali muito mais devido ao estranhamento do estrangeiro, do sujeito que não tem nada a ver com aquele cus de Judas, que afinal, não é mesmo Portugal. O personagem principal, que nos conta sua jornada, não se vê ali em África. Porém não podemos nos iludir, já que os únicos momentos que Lisboa soa familiar e na narrativa da saudade e da memória. Nestes reinos o lar é outro, sempre diferente do lar encontrado na volta, na visita.
Antônio Lobo Antunes escreve difícil e de forma particular, sua escrita segue o sentido da mente humana, não há um começo-meio-e-fim definido nos parágrafos, apenas ao longo do tempo o leitor se localiza no meio de tamanha confusão. Mas, Antunes como bom psicanalista que deve ser, sabe que a mente humana não é uma via expressa, mas sim um labirinto, e cheio de minotauros.
Os cus de Judas trata dos traumas de um país num momento histórico muito específico, esta dada uma possibilidade do estudo da psicologia e da história, talvez sirva de leque para esta junção que me interessa cada vez mais. Além disso, o livro é uma peça fundamental para entendermos um pouco mais dessa mistura entre África, Brasil e Portugal, algo tão visível mas nem um pouco claro.

quinta-feira, 25 de julho de 2013

Contos da Palma da Mão - Yasunari Kawabata


O pouco de literatura japonesa que conheço me fascina. Não creio que os venero tanto quanto os russos ou os beatniks, mas é certo que eles tem um lugar especial no meu coração. Definitivamente meu fascínio é pelo simples fato da literatura japonesa ser simplesmente particular e dentre eles Kawabata é o grande mestre.
Conheci sua literatura por meio de Mil Tsurus. Onde fica evidente um conflito oriente x ocidente. Mesmo que seja bater na mesma tecla, olhar o outro ajuda a entendermos nós mesmos, Tdorov dá esta brecha ao lermos livros como A conquista da América. Pelo fato destes estranhos e bizarros japoneses nos enxergarem da mesma forma, como seres exóticos afinal, gosto de lê-los.
Contos da palma da mão têm a felicidade de organizar os escritos pela ordem cronológica, esta organização nos permite perceber uma série de questões. Vamos percebendo ao longo do tempo que este choque entre o invasivo mundo ocidental e a cultura tradicional japonesa se tornam um elemento cada vez mais perceptível, especialmente no período imediato ao pós-guerra.
Porém o elemento mais nítido nos escritos de Kawabata, e apenas recentemente percebi isto, é sua preocupação estética. A primeira pergunta que pode ser feita é: “como a estética pode estar na literatura?”, foi o que pensei ao menos, até porque normalmente a palavra “estética” acaba resumido ao “bonito” e “feio”. Bem, foi necessário um mínimo de entendimento do que seria a estética – o que não é tarefa fácil – para entender Kawabata.
Há uma atenção dada pelo autor em elementos que apenas podemos sentir de forma muito específica, como por exemplo uma brisa outonal. É complicado compreendermos este tipo de citação no meio de uma história, porém, quem já sentiu esta tal brisa outonal, sabe da importância que isto têm para vida. Ler também é uma forma de deixar-se entregar a sensações, mesmo que não sejam tão intensas e simples de serem alcançadas como outros meios mais simples, a exemplo do consumo de drogas como álcool ou cafeína. Entretanto Kawabata procura fazer o leitor sentir estes elementos estéticos, para além de contar uma história.
Posso estar afinal, completamente errado e estar sendo demasiado simplista. Porém apenas recentemente este elemento sensorialista ficou evidente para mim, ou melhor, apenas recentemente pude sentir tais sensações. Sua preocupação talvez esteja num dos elementos mais importantes da escrita, produzir sensações, e isto não é tarefa fácil.

domingo, 30 de junho de 2013

Regimes de historicidade - François Hartog


François Hartog toca numa questão fundamental para o historiador: o tempo. Podemos muitas vezes esquecer que o tempo é um elemento fundamental para história, mas isso não diminui sua importância para tal área do conhecimento, no máximo demonstra alguma falha dos historiadores. Comecei a me interessar pelo tempo após ler um texto, do qual eu não me recordo o título, de Lucien Febvre onde ele abordava historicamente a questão do tempo, mais em específico este tempo do relógio, este tempo imediato como gosto de chamar – saber que horas, qual dia. E bem, da mesma forma que este tempo sofrerá mudanças constituídas por um processo histórico, o tempo (passado presente, futuro) também mudará. O que parece mudar afinal, é a relação com o tempo, já que afinal de contas ele sempre existiu. O que mudou não é o tempo, mas nosso entendimento dele.
Ao longo da “história da História” (ou seja, uma análise da historiografia, o conhecimento e as teorias produzidos sobre o estudo do passado) percebemos que houveram distintos focos em distintos tempos. De alguma forma, o único tempo que é “real” é o presente, apenas ele existe, o passado já foi, não existe mais exceto na memória, enquanto o futuro não aconteceu, não se constituiu todavia. Devido a isso parece que cada vez mais o presente é o que importa. Dois exemplos possíveis podem ser ilustrados por meio de dois fatídicos episódios que ocorreram com a Alemanha. O primeiro é o nazismo. Era por meio do passado, da história alemã que o III Reich desejava construir um futuro, era no passado, desde os tempos do sacro império, que buscavam justificar a construção de um futuro, era no passado que este futuro ganhava direção. A simbologia nazista ilustra isto, a saudação com o braço esticado era feita entre os antigos romanos, a águia era também um importante símbolo militar romano, o uso desenfreado das colunas romanas nas construções nazistas também buscavam neste passado – aliás o sacro império foi o maior herdeiro do império romano ocidental – sua justificativa para um futuro, e de alguma forma o presente era apenas um pedaço pequeno entre os gloriosos passado e futuro.
O segundo é o que parece ditar muito mais o nosso tempo, a queda do muro de Berlim foi afinal de contas um grande momento de ruptura, e suspeito ainda não termos digerido este evento e o posterior desmantelamento da União Soviética de forma concisa. Um fato interessante é que ninguém esperava que o muro caísse e muito menos que a URSS acabasse. Se planejava o futuro de uma forma, de uma maneira, partindo de um certo aspecto, a existência do muro e da União Soviética. Com a queda do muro o presente chamou a atenção para si, dizendo “sou eu que decido”, não o passado, não o futuro. Ninguém esperava o que ocorreu, o mundo e uma série de relações se transformaram num ritmo e de uma forma que ninguém imaginava. Creio que este evento ilustra bem nossa relação com o presente. Uma delas é a de que planos para datas muito longas são cada vez mais ignorados e abandonados, seja entre empresas, governo ou até mesmo pelas pessoas ordinárias e o que querem de sua vida. Talvez dai venha a crescente onda de não se desejar mais ter filhos, eles implicam este planejamento longo, esta “limitação do presente”. Com um filho para criar, já se sabe que algumas responsabilidades serão constantes e estas precisam de planejamento – educação, saúde, moradia, todos elementos que durante muito tempo os pais terão que se preocupar para darem uma boa criação para seu filho. Um exemplo prático é convidar pais adolescentes para irem a uma festa, a primeira coisa que atravanca a saída é encontrar alguém para cuidar da criança, isto exige um mínimo de planejamento.
Da mesma forma que o presente nos pegou de surpresa, queremos aproveitar estas surpresas do presente, como por exemplo ir a uma festa de última hora. É inegável que existe também uma crítica ao futuro enquanto provedor de melhora da nossa vida – será que não é esse o conceito de progresso? Ou seja, direcionar-se para o futuro não garante necessariamente uma melhora de vida, mesmo que a tecnologia se desenvolva, sabemos também que esta não causa unicamente uma melhora de nossa vida. Se não fosse por estas impressões, não haveria uma curiosidade pelo passado, e muito mais importante do que isto, uma vontade e encantamento pela preservação desse passado. Exemplos? Os museus e os tombamentos. Não só prédios dispersos pela malha urbana são tombados, como também áreas inteiras de cidades. Estes bairros tombados e os museus com fragmentos do passado são lugares que visitamos com grande alegria. O tombamento também é acompanhado da velocidade com que “as coisas mudam”, sempre há aquele pesar ao perceber que aquele prédio que se gostava tanto sumiu.
Em resumo temos esta preocupação com o tombamento devido a velocidade que percebemos o nosso presente. Queremos que esta nossa vivência (que ocorre no presente) não seja necessariamente um apagar do passado, sabemos que de alguma forma este passado faz parte, às vezes maior, outras vezes menor, do nosso presente, mesmo depois de rupturas. Existe nesta problemática questões referentes a importância da história, a construção e as mudanças dos conceitos e relações temporais e um desafio gigante, que Hartog parece começar a organizar, porém ainda sem uma resposta muito clara, já que este presente que vivemos, parece tão efêmero. E sabemos que, como coloca Marc Bloch, é do presente que o historiador parte, é de seu tempo, mesmo que se fale da Idade Média, se fala da Idade Média possível da época em que se pesquisa e estuda. O presente talvez seja um nó mais difícil de desatar do que o passado.

terça-feira, 18 de junho de 2013

A economia das trocas linguísticas - Pierre Bourdieu


Não basta falar, é preciso estar autorizado a falar. Não é a ordem dada que faz sua execução, mas sim quem dá esta ordem. Um soldado ordenar a seu tenente que “limpe as latrinas”, consegue na melhor das hipóteses, comprovar que é isso normalmente chamado de louco. Dai que os discursos por si só não bastam, há todo um entorno que importa. Não basta ordenar que a latrina seja limpa, e preciso poder dizer isso. Porém este jogo se dá de forma menos rígida, sem uma hierarquia clara e já formada.
Talvez, um exemplo mais claro seja o da pessoa que por usar palavras difíceis e termos técnicos ganha maior legitimidade de fala do que outro falante teria. Não só há esta economia das palavras, onde escolher em que momento e quais palavras usar se constitui algo muitas vezes mais considerado do que o próprio discurso, como influi também toda uma série de investimentos linguísticos localizados fora do universo das palavras.
Não raro observações a respeito dos hábitos e costumes de uma pessoa influem sobre seu discurso, “não sabe se comportar” ou “se porta mal” implicam também no valor e abordagem dada a tal fala – e falante. Um exemplo típico que encontramos nas discussões “de internet”, são os deboches feitos ao adversário de debate quando comete erros gramaticais. Os políticos sabem disso muito bem, não é tanto o dito, por isso “caras bonitas” fazem mais sucesso. Não por acaso esta atenção tão grande dada as roupas da Dilma, que enquanto mulher e presidenta precisa aparecer como tal (e aqui vale plantar a semente da discórdia e perguntar no que a forma de se vestir influi na qualidade do serviço de alguém?), como se sua primeira obrigação fosse suprir muito mais um conceito de feminilidade do que de governabilidade.
A forma como se fala (calmo, enérgico, pausadamente, etc), passando pela postura do corpo (coluna ereta, porte físico, etc), indumentária, posição social (professor, juiz, engenheiro, família tradicional, etc) e as palavras ditas (você e não ocê, por exemplo), acabam surtindo um efeito maior do que o dito. Vide várias críticas a pessoas que utilizam outras palavras para dizer as mesmas coisas, característica usualmente dada às classes mais desfavorecidas financeiramente. Vemos ainda algo semelhante a questão dos bárbaros, palavra que originalmente designa quem não sabe falar direito minha língua, que gagueja, logo é outra cultura ou parte de outro lugar, e essa dissemelhança me permite posicionar tal falante gago em um estrato social diferenciado, justificando assim algo injustificável, tratar de forma distinta uma pessoa pelo entorno que o construiu, e não seu posicionamento ético no convívio social. E com isso buscar justificar se tá sujeito merece ou não ser ouvido.
A linguagem está imbuída de poder simbólico e para ser validada precisa deste capital cultural.

sábado, 15 de junho de 2013

News the Lord Told Us - Bira

 
Atualmente não podemos negar a importância da internet para isto que chamamos de liberdade, especialmente a pessoal. Os eventos que ocorreram na Tunísia, Egito, Israel, Turquia, São Paulo... soube de todos eles pela internet muito antes de passar na mídia convencional. Entretanto vejo que esquecemos muitas vezes que antes da internet já haviam alternativas para a mídia convencional e monopolizadora acima de tudo, dos quais podemos citar conglomerados como Globo, Abril, Televisa (México), Clárin (Argentina) e por ai vai. Defendem a liberdade de expressão até onde vão seus interesses, numa sociedade onde a informação se mostra cada vez mais estratégica, manipular (igual um químico manipula elementos) esta informação é algo de suma importância. O principal interesse de uma empresa é o lucro, e não vamos esquecer a mídia convencional é formada por empresas, que visam o lucro. Detalhes a parte podemos perceber que uma série de assuntos acabam não sofrendo abordagem, seja pelo desinteresse, medo ou falta de público para tal assunto.
   Neste ponto uma coisa que rolava muito antigamente era a troca de material. Emprestar discos, gravações em fitas k7 ou na casa de algum amigo para escutar música eram práticas normais e corriqueiras. Muitas vezes alguém mais abonado conseguia viajar para outro lugar, dentro ou fora do país, e de lá trazia algum som novo que estava longe de tocar nas rádios, ou a exemplo do chamado rock gaúcho, estava restrito a uma região. Não só isso, como há sempre a produção independente local, sem apoio de gravadoras ou alguma rádio – papel que a Rádio Atlântida, filiada a “toda poderosa” RBS, exerceu de alguma forma durante muito tempo nos estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Verdade seja dita conheci muito material por meio desta mídia convencional, foi numa grande rádio que ouvi the Doors pela primeira vez e assisti Pulp Fiction na programação tardia de uma grande rede televisiva, mas foi graças a trocas com amigos e conversas que aprendi e conheci muito mais.
Também existem – sim ainda existem, a internet só está somando – esses outros meios. Como eu era um singelo garotinho durante os anos 1990, ficava complicado sair de casa. Ainda brincava e era esta atividade essencial que tinha com meus amigos durante minha pré-adolescência. Porém devo muito ao contato com as pessoas mais velhas ao meu redor, meu tio é que emprestou o cd do Lez Zeppelin para minha irmã gravar numa fita k7 e assim podermos acessar tão restrito material de maneira barata, que coubesse no restrito e inexistente orçamento – meu pai não dava mesada. Minha tia possuía a clássica coletânea do Smiths com as duas fotos do Mccullin (se não me engano). Porém agradeço muito a minha irmã, alguns anos mais velha do que eu, ela fazia algo que parece ser corriqueiro até esta época, pelo que sei meus pais faziam a mesma coisa. Era ela que ia para o centro encontrar seus amigos, sem combinar anteriormente nem nada, sabia dos lugares frequentados pela galera. Algumas vezes ela aproveitava para distribuir currículos, encontrava algum amigo e já logo aproveitavam para fazer alguma outra coisa, desde que fossem baratas, óbvio.
Numa destas investidas ao centro chegaram até minhas mãos duas edições deste zine que rolava por aqui na cidade de Blumenau: News the Lord Told Us. Foi por meio deste zine que muita coisa eu fiquei sabendo e encontrei textos que falavam de coisas que refletiam muitos sentimentos meus. Mesmo sem ter conhecido na época muito mais gente do que a minha irmã – da qual até hoje gosto de encontrar para “curtir um som” – foi ótimo saber que havia mais pessoas na cidade que se interessavam pelas mesmas coisas, afinal o zine era feito aqui. Conforme pude fui tomando contado com o que ali estava, e outras foram aparecendo ao longo do tempo, a maior parte, como sempre, acabei esquecendo mesmo. Guardei estes dois exemplares, distribuídos gratuitamente e que não passavam de uma A4 xerocada dos dois lados (uma saída barata), e recentemente devido a modificações aqui em casa, reencontrei estes exemplares e recordei muita coisa. E também acho que é pertinente a muitas outras coisas que vem rolando atualmente. É pertinente ao nosso tempo.
Faz algum tempo eu vinha querendo postar material restrito, em especial zines, no blogue, fugir às vezes da literatura que tu consegue fácil numa livraria, seja pegando direto na estante ou comprando nalguma loja online. Primeiro me faltava um escâner, que agora apareceu e estou usando ele bem feliz (minha vida social está um pouco mais restrita, verdade). Foi então que cheguei a conclusão que deveria inaugurar esta prática de postar alguns zines por um dos primeiros – ou o primeiro, pouco importa afinal – material restrito que chegou a minha mão. Espero que gostem do escaneamento do zine que disponibilizo para vocês. Está em jpg.


sexta-feira, 31 de maio de 2013

Lugares para a História - Arlette Farge


Peter Gay já demonstrou que a História pode se aventurar junto com a psicologia. Ambas áreas do conhecimento me interessam, e parecem tocar numa questão importante do ser humano, a pele – ou seja, as sensações, sentimentos. O século XX começou marcado pela crença na modernidade, na tecnologia e na ciência como salvadoras do mundo, uma “morte de Deus” já se anunciava no horizonte do século XIX e parece ter se concretizado ao longo do século seguinte, com o mundo ocidental se mostrando cada vez menos místico. Esta confiança enorme nestes três elementos foi também um dos fatores que levaram a coisas terríveis como as duas guerras mundiais e o fascismo e totalitarismo. Algumas pessoas mais antenadas com seu tempo logo perceberam que algumas coisas estão para além do bem e do mal, e logo começaram a problematizar esta modernidade de princípios do século XX, Benjamin, Heidegger e Reich podem ser citados aqui.
Junto com esta aposta no futuro, toda uma lógica histórica estava intrínseca. Já teremos uma forte escolarização da população e desde muito tempo a disciplina de história faz parte do currículo, sempre esteve lá e parece impensável retirá-la. Pelos menos os primórdios do século XX são marcados pela fiel promessa de um futuro, é neste recorte temporal que as primeiras ficções científicas aparecem, vale lembrar. Porém tal futuro foi se mostrando ao longo de duas guerras, totalitarismos e outros episódios desagradáveis, não tão dourado como o prometido.
Um exemplo importante para pensarmos isso, é a Alemanha. O país começa o século como uma das maiores – senão a maior – potência do mundo, e ao fim da segunda guerra vê sua população expulsa de seus territórios (ver “O Tambor”) que vão ser reduzidos e entregues para outros países e ainda por cima dividida entre os dois blocos da guerra fria. Lembro da vez em que minha professora de alemão comentou de seu namorado alemão durante sua estada em Hamburgo, quando viam algum prédio antigo, ainda com marcas de bala, ou o famigerado muro, campos de concentração entre outras marcas de um passado recente, seu comentário usual era “es tut mir weh” - “isso me dói”. Seu sentimento era de dor e culpa, de forma clara, mesmo não tendo vivido boa parte do tempo em que aquelas marcas – traumas – foram feitos.
Existe uma história dos sentimentos, estes são difíceis de rastrear, não que seja impossível, mas como saber dos sentimentos de alguém no século XVII? Há formas e mais formas, a fonte não é a grande limitação. Mas depois de vivenciarmos um período tão marcado por decepções e traumas, ignorá-los se mostra até mesmo falta de educação. Até porque estes sentimentos, a exemplo do sentimento nacionalista, passa por uma construção histórica. Afinal, foi o sentimento de revanche pela Alsácia-Lorena que impulsionou a França na 1ª guerra, a sensação de ver seu país saindo de uma grave crise e retomada da antiga grandiosidade dos tempos do Kaiser que levou Hilter a ser ovacionado. O nazismo não vai deixar de usar o passado para construir um sentimento de confiança no povo alemão.
Depois de tudo que aconteceu, os alemães tiveram que mudar bastante, buscar novos desdobramentos para esta modernidade que continua ai, vai ver que é por isso que lá surgiram o krautrock, a música eletrônica, uma série de cineastas consagrados (Wim Wnders, Herzorg...) que trazem uma nova proposta estética para o cinema. Talvez, partindo destes exemplos possamos olhar melhor para esta construção dos sentimentos e o tempo histórico, alias, há pessoas que até hoje se emocionam com a figura de Getúlio Vargas, mesmo que tenha nascido depois da própria morte do então presidente. E não só na Alemanha o tempo deixou traumas, o século XX parece um grande caso psicológico, e vale lembrar, a América Latina não parece ter se entendido ainda direito com seu recente passado ditatorial, até porque ele lida com sentimentos, muito profundos para ambos os lados.

domingo, 14 de abril de 2013

Bob & Harv: dois anti-heróis americanos - Harvey Pekar; Robert Crumb


Harvey Pekar, imagino eu, vai trazer pela primeira vez o homem ordinário para os quadrinhos. Não que ele já não estivesse lá, seja no jornalista nerdzão que na verdade é um extraterrestre excepcional, ou no fotografo freelance picado por uma aranha ou alguém que sofreu mutação genética, mas os personagens de Pekar tem desafios diferentes do de vilões malvados, eles precisam de paciência para enfrentar a fila do mercado, grana para pagar o aluguel ou sorte no amor. Não há uma tentativa de suprir nossa insuficiência de vida num personagem semelhante a nós, porém dotado de uma grande virtude oculta, ele é ordinário e nada mais, tal qual somos a maior parte do tempo.
Talvez a grande distinção do romance em relação a outras abordagens literárias seja a emergência do indivíduo, não raro algumas prosas são em primeira pessoa (como Werther do Goethe), deixando bem clara essa narração do “eu”. Por alguma razão o romance se catalisa com a modernidade, não antes, justamente quando uma consciência de si enquanto indivíduo surge. O papel social não é mais o de alguém destinado a exercer alguma pretensão divina, como louvar tal deus ou servir a tal rei, mas sim a de que “eu” sou um indivíduo. Somos egocêntricos afinal.
Porém esta noção se passa por uma metáfora geográfica, onde este ser individual precisa saber onde está para se mover melhor, por isso algumas necessidades surgem, como uma constante afirmação de si, que pode ser vista nas conversas quando discutimos aquilo que é “bom gosto” (boa música, boa comida, bons filmes...) de forma geral, chegando algumas vezes a casos extremos de nacionalismos e outros pre-conceitos fascistas. Da mesma forma como um questionamento semelhante ao de Ráskolnikov, em Crime e Castigo, que está preocupado com sua extraordinariedade ou mediocridade. Ele se localiza enquanto homem ordinário, comum, padrão, e entende que coisas precisam ser feitas para superar isso, dai seu desejo assassino ser em realidade uma vontade de superação de si.
Mas o jogo correu bastante desde os séculos XVII e XVIII, nossos desafios não são mais um Czar ou um amor impossível, apesar de serem questões semelhantes, nossos desafios são o cotidiano, de forma muita mais nítida do que antes. Há uma ascensão do cotidiano, ele vem se mostrando cada vez mais um lugar de combate, havendo assim uma necessidade de superar o cotidiano. E utilizamos pra isso ferramentas, que passam desde a música e outras artes, até mesmo passando por aportes teóricos com titulação simbólica cultural mais rebuscados1. É deste homem cotidiano que fala Pekar, sujeito fora dos grandes centros, neurótico, cansado, incompreendido, comum e ordinário, até demais. E é no mesmo cotidiano, que faz dele um sujeito tão medíocre, que se busca romper tal barreira, superando-se a si mesmo – de alguma forma – como escrever quadrinhos ou blogues.
1Como citar autores de prestígio acadêmico em notas de rodapé para dar legitimidade ao discurso feito e justificar a posição social do discursador, transformando assim a fala em algo merecido de atenção e autenticidade. Para mais detalhes ver: BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas linguisticas: o que falar quer dizer. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1996.

domingo, 24 de março de 2013

A Varanda do Frangipani - Mia Couto




A memória, assim como o saber, é um objeto de poder. Sendo assim, tal objeto acaba se mostrando lugar de disputas, embates e combates. A memória é algo inventado e produzido, da mesma forma que um carro ou um projeto arquitetônico. Da mesma maneira que os dois exemplos citados, a memória é atravessada de significados, não sendo por isso um lugar “mentiroso” ou neutro. Da mesma forma que um corpo é desenterrado, a memória também o pode ser, e assim como o corpo, a memória também se transforma conforme é desterrada. E este pode ser um fantasma, um xipoco, que vaga entre nós de forma silenciosa mas nos causando calafrios.
Uma prática tão simples, como a investigação policial, acaba se mostrando carregada de mais significados do que o simples desejo de ver resolvido um mistério. Tal prática acaba se revelando portadora de uma ameaça, de um ultimato, é um pedido para que aquelas memórias esquecidas numa fortaleza abandonada, no inóspito interior de um país ignorado, aceitem seu fim e abram mão de seu passado, mesmo que este tempo não se apresente mais existente, também é confuso e impreciso. De qualquer forma, não é uma cronologia ou História (enquanto conhecimento científico) que se busca no já inexistente passado, mas sim a memória. Por isso que se entrevistam os velhos, para saber do que eles lembram e a partir disso, construir algo, no caso evidências que levariam a resolução do caso.
É com o suporte dado pela memória que os nazistas conseguiram tanto apoio popular (1ª guerra, império alemão e o kaiser, etc), é sob a égide de uma revolução da qual ninguém mais resta vivo que a França orienta boa parte de sua política e mistica cultural dentro do ocidente, é nesta memória produzida que o governo justifica o financiamento de festas (Carnavais, festa da uva, Oktoberfest, etc) e utiliza estas festas associadas a memória para obter resultados políticos – que em termos mais próximos a uma “conversa de bar”, podemos chamar de pão e circo, mas não limitemos apenas a isto.
Entretanto há coisas que não se quer esquecer. As pessoas não aceitam ordens contra a sua vontade. Ninguém é obrigado a nada e aceitamos porque queremos ou, no momento tal opção se mostra conveniente. Neste sentido negociamos de alguma forma com a “proposta” a nós ordenada. Desta forma os idosos do asilo dão, ao longo da narrativa, suas respostas ao que Izidine faz na fortaleza. No fundo brincam com ele, já que este é um estrangeiro. Não aceitam de prontidão que algum bárbaro, que gagueja e não fala a língua, tente brincar com sua memória, por isso usam da própria matéria-prima para brincar com ele, confundi-lo ou até mesmo rir. Sabem, portanto, que memória não é, mas constitui a parte mais atuante da história, já que partindo dela é que se inventa o passado.
No movimento de desenterrar as coisas e rememorar, a trama se desenrola, e junto com toda esta rememoração uma série de questões se propõem, todas elas, da mesma forma que o fantasma, tem seu lugar no passado.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Estética da Ginga - Paola Berenstein Jacques

      
Várias vezes Lucien Febvre usará a expressão “combates pela história”, mesmo que esta frase seja pouco clara ela indica que o francês sabia muito bem dos jogos de poder em que a História está inserida e faz parte – independente de sua vontade. De alguma forma acredito que um dos nossos desafios contemporâneos dentro da sociedade brasileira seriam “combates pela cidade”. Moramos em cidades péssimas, e neste quesito nada melhor do que a copa para ilustrar isto. Não podemos fugir de nossa história, negar nosso passado é tão difícil quanto fugir do saudosismo. Sobre este problema urbano que nossa realidade concreta nos impõe, a teoria rizomática pode ajudar muito.
De maneira geral e resumida, as cidades brasileiras não passaram pelo rígido esquema de quadras de nossos vizinhos colonizados por espanhóis. Quando observamos esta grade nas cidades coloniais, percebemos que a rigidez é outra, Paraty não é tão geométrica como Colonia del Sacramento, mesmo que nossa percepção indique que ambas seguem um mesmo “plano diretor”. O que ocorre é que nossa geografia e constituição também é outra.
O grande roteiro das reformas urbanas no Brasil (muitas vezes ainda) seguem o estilo do “bota abaixo”, ou da demolição do cabeça de porco, episódios já bem documentos que ocorreram no Rio de Janeiro – então capital do país[i]. O plano é simples, a constituição presente da cidade não atente os desejos de modernidade da época, então destroem todo e refazem a cidade, seguindo um plano de forte inspiração (e cópia) europeia. Neste sentido os grandes alvos são os cortiços, e logo em seguida as favelas.
Não há cidade no Brasil que não possua uma favela ou algo que se assemelhe a isto. No geral chamamos de favela lugares onde as habitações apresentam inúmeros problemas habitacionais como: mobilidade, saneamento, desmoronamento... Sabemos e não negamos que as favelas apresentam problemas de urbanidade. Porém o interessante é observar que durante anos o modelo seguido é um puro fascismo urbanistico, não abrindo mão de tratores para demolir tudo que está ali e reconstruir novamente algo o mais próximo possível de ideais iluministas/cartesianos. Nisto ainda somos reféns das quadras.
O rizoma ajuda a combater este fascismo urbanista, nos faz compreender de que não precisamos destruir uma favela para torná-la aprazível. Nos ajuda a entender que a favela é uma constituição diferente de urbanidade e para lidar com ela não precisamos destruí-la, mas sim compreende-la e aceita-la. E querendo ou não as cidades brasileiras se constituem de forma muito mais semelhante (e rizomática) as favelas do que ao rígido e geométrico plano de quadras. Esta é nossa realidade, não por acaso foi aqui que o conceito de bricolage ganhou forma, parece que esquecemos disto.



[i]  Para mais detalhes recomendo ver: CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortiços e epidemias na Corte Imperial. São Paulo: companhia das Letras, 1996.