sábado, 10 de junho de 2017

O iluminismo e os reis filósofos - Luiz Roberto Salinas Fortes

 
Livro composto no melhor estilo “primeiros passos” faz parte de uma coleção voltada ao debate histórico. O caso aqui é do Iluminismo, e através de um curioso baralho de cartas onde as realezas são substituídas por filósofos, o autor tece uma relação entre estes pensadores clássicos do Iluminismo, sobretudo os franceses, e os reis déspotas esclarecidos.
Apesar de não tratar especificamente desta questão, estamos abordando um século XVIII em que a França conseguiu galgar o posto de principal nação. Ultrapassando as potências ibéricas, é a França (com a Inglaterra muito próxima) que ocupa a centralidade do mundo ocidental, e junto com sua etiqueta, exércitos e comerciantes vão também as ideias. Em superação ao Ancien Régime, será necessário romper com seus preceitos e dogmas. Estes se organizavam fundamentalmente em torno da religião, e a justificativa do rei e seu governo estava num direito divino explicado através de uma complexa escolástica. O movimento que nos interessa aqui é, o rei deixar de ser uma figura divina para se tornar uma figura de razão, e, é esta última que vai galgar o centro de tomadas de decisão e raciocínio que culminam na Revolução Francesa e fundamentam a modernidade. O processo histórico de que tratamos é extenso, muitos colocam a tomada de Constantinopla pelos Turcos, mas seguramente o evento das grandes navegações dialoga melhor com a nova dinâmica de pensamento que começa a se constituir: a modernidade.
É um processo que propicia a emergência de figuras até então excluídas, pessoas de certa riqueza, mas não necessariamente com título de nobreza, os burgueses. Estes colocam a razão, o indivíduo, a liberdade e a propriedade como os valores fundamentais para a constituição de uma sociedade. Isto estava em distinção com a soberania incontestável do rei e da Igreja, dois organismos que não raro se confundiam, e consequentemente da honra em obedecer e servir ao rei – o que por extensão era servir e obedecer aos pressupostos divinos. Mesmo que este Ancien Régime não fosse tão rígido como o delineamos agora, é notável como suas estruturas começam a ruir ao longo do século XVIII e novas questões são colocadas.
O Iluminismo não se entendia como um movimento claro e coeso, a briga e discórdia entre suas principais figuras era recorrente. O que ocorre é uma certa novidade, onde figuras antes impossibilitadas de alguma participação política, começam a fazer seu espaço. São os burgueses, pois em sua maioria não viviam do trabalho bruto dos camponeses e não eram nobres. Em sua maioria, estavam mais próximos do que hoje é chamado de profissionais liberais. A novidade está em, ao mesmo tempo que muitos destes pensadores eram presos ou perseguidos por seus déspotas em seus respectivos países, não raro encontravam algum apoio e abrigo no seio de uma corte estrangeira. Estes déspotas estavam, em maior ou menor grau, sintonizados com os debates de seu tempo. Verdade que poucos eram um Frederico II da Prússia, mas também é verdade que ele não era exceção. Desta forma muitos destes Iluministas acabaram trabalhando ou aconselhando muitos destes reis, que se mostravam de fato interessados pelas questões postas pelo Iluminismo. Sua ferocidade com os detratores ao mesmo tempo que demonstravam interesse pelas novas obras lhe dá o título de déspotas esclarecidos.
O autor em sua conclusão é algo pessimista e corre um sério risco de concluir sua análise com algo de anacronismo ao afirmar que pouco mudou. As mudanças são significativas, e não por acaso temos uma Revolução encerrando este século que foi o XVIII. Ao longo do próprio processo uma integração e comunicação entre os diferentes sujeitos de diferentes nações, demonstram uma transformação significativa em relação a um mundo antes em menor diálogo. Isto é possível pelas questões técnicas da época, como melhoria e expansão da rede de estradas e carruagens bem como da navegação, e fundamentalmente do impulso de diálogo com outros povos e outros sujeitos. Não podemos ignorar que ao termos um rei protegendo alguém perseguido por outro rei, o movimento de constituição de Estados soberanos se faz mais claro e nos auxilia no entendimento da consolidação dos Estados nacionais no pós Revolução Francesa. A simples questão do surgimento do Estado moderno e de sua transformação em um aparelho que deve servir ao bem estar do rei para servir o bem estar da nação, é algo notável. Há transformações significativas sim, apesar do justo pessimismo do autor em sua conclusão, ao notar que algumas questões ainda se arrastam. E nisto curiosamente está o mérito do livro, ele demonstra o processo de tensão em que esta transformação histórica ocorreu. Em extenso período, os pensadores Iluministas e os déspotas conviveram em constante negociação de seus atritos e concordâncias, porém em dado momento a dialética alcançou seu limite de contradições e o constante choque e fricção gerou um evento explosivo como a Revolução Francesa. 


domingo, 4 de junho de 2017

Trapaça - Marcelo Labes

 
Quando falamos uma palavra, mais do que desejar transmitir um significado a invocamos pedindo para que se faça presente. Falar é mais do que mero jogo de significados. Falar é algo vital para o ser humano. É na fala que nos relacionamos com a língua. E a língua fica na boca. Entendendo isto, podemos reconhecer o grande mérito da poesia: evocar uma palavra como se fosse a primeira vez.
O maravilhoso da poesia é seu caráter de oralidade, é por isso que através dela nossa relação com a língua mais se desperta. Ler poesia traduzida é um sacrilégio. Não se traduz poesia da mesma forma que não se traduz nome próprio. O próprio não tem comparação, muito menos tradução. Desta forma, a poesia carrega uma língua inteira em seus versos e, do poeta, se espera que consiga fazer bom uso da língua colocando seus versos em palavras familiares que soem como se nunca escutadas antes.
A forma mais primitiva de literatura é, sem margem para dúvidas, a mais complexa. Inventamos a poesia para decorar, como já não precisamos mais decorar desde a popularização do papel e do livro, como fazer poesia? É disto que trata Trapaça, dos puxões de tapete e rasteiras inesperadas que a vida nos proporciona. Cabe a um poeta hoje se perguntar, por quê escrever versos quando eles não são mais necessários para a memória? Ao revés de previsões alarmistas, lemos e escrevemos em intensidade não só cada vez maior, como também jamais imaginada. Nisto tudo como fica a oralidade, a poesia e a língua? Como dizer algo que soe novidade, utilizando palavras gastas?
Arremessados num mundo sob o qual não temos controle, uma infinidade de variáveis se põem em objetivos que em dado momento eram claros. O poema aqui não é sobre aquilo que não existe, ou seja, algum ser inimaginável e inalcançável. Não é uma ode a algum sujeito mais indivíduo que os outros. Nem sobre uma paixão mais ardente que as outras. Muito menos sobre o sujeito de classe média que carrega as angústias do mundo inteiro dentro de si. Nada disto é real o suficiente para nos tocar, e assim as palavras soam vazias, gastas e repetidas. Os versos tratam da pessoa inserida no limite entre a civilização e a barbárie, do banho de rio e da fumaça do ônibus, da solidão e da tevê.
Num tempo em que não se precisa mais decorar, a poesia deve ser outra. Manter seu esforço de ser a palavra dita pela primeira vez, mesmo que ela seja familiar. Num tempo em que se escreve e lê cada vez mais, a língua continua. Falamos, berramos. Isto não vai deixar de acontecer. Nos relacionamos com a língua, e ela a sua maneira se relaciona com a gente, nos produzindo uma forma de pensar e ver o mundo. Se a língua ainda existe, a poesia também vai existir, cabe a ela enamorar-se de pessoas que compreendam seu tempo e sua língua. E sobre isso, é muito bom saber que tem gente produzindo coisas assim em português.