Quando falamos uma palavra, mais do que desejar transmitir um
significado a invocamos pedindo para que se faça presente. Falar é
mais do que mero jogo de significados. Falar é algo vital para o ser
humano. É na fala que nos relacionamos com a língua. E a língua
fica na boca. Entendendo isto, podemos reconhecer o grande mérito da
poesia: evocar uma palavra como se fosse a primeira vez.
O maravilhoso da poesia é seu caráter de oralidade, é por isso que
através dela nossa relação com a língua mais se desperta. Ler
poesia traduzida é um sacrilégio. Não se traduz poesia da mesma
forma que não se traduz nome próprio. O próprio não tem
comparação, muito menos tradução. Desta forma, a poesia carrega
uma língua inteira em seus versos e, do poeta, se espera que consiga
fazer bom uso da língua colocando seus versos em palavras familiares
que soem como se nunca escutadas antes.
A forma mais primitiva de literatura é, sem margem para dúvidas, a
mais complexa. Inventamos a poesia para decorar, como já não
precisamos mais decorar desde a popularização do papel e do livro,
como fazer poesia? É disto que trata Trapaça,
dos puxões de tapete e rasteiras inesperadas que a vida nos
proporciona. Cabe a um poeta hoje se perguntar, por quê escrever
versos quando eles não são mais necessários para a memória? Ao
revés de previsões alarmistas, lemos e escrevemos em intensidade
não só cada vez maior, como também jamais imaginada. Nisto tudo
como fica a oralidade, a poesia e a língua? Como dizer algo que soe
novidade, utilizando palavras gastas?
Arremessados num mundo sob o qual
não temos controle, uma infinidade de variáveis se põem em
objetivos que em dado momento eram claros. O poema aqui não é sobre
aquilo que não existe, ou seja, algum ser inimaginável e
inalcançável. Não é uma ode a algum sujeito mais indivíduo que
os outros. Nem sobre uma paixão mais ardente que as outras. Muito
menos sobre o sujeito de classe média que carrega as angústias do
mundo inteiro dentro de si. Nada disto é real o suficiente para nos
tocar, e assim as palavras soam vazias, gastas e repetidas. Os versos
tratam da pessoa inserida no limite entre a civilização e a
barbárie, do banho de rio e da fumaça do ônibus, da solidão e da
tevê.
Num tempo em que não se precisa
mais decorar, a poesia deve ser outra. Manter seu esforço de ser a
palavra dita pela primeira vez, mesmo que ela seja familiar. Num
tempo em que se escreve e lê cada vez mais, a língua continua.
Falamos, berramos. Isto não vai deixar de acontecer. Nos
relacionamos com a língua, e ela a sua maneira se relaciona com a
gente, nos produzindo uma forma de pensar e ver o mundo. Se a língua
ainda existe, a poesia também vai existir, cabe a ela enamorar-se de
pessoas que compreendam seu tempo e sua língua. E sobre isso, é
muito bom saber que tem gente produzindo coisas assim em português.
aiou!:D
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