domingo, 21 de setembro de 2014

As crônicas marcianas - Ray Bradbury

O grande mérito da ficção científica é conseguir gerar reflexões. Geralmente tratam de questões presentes jogadas num tempo futuro, seja os totalitarismos em 1984 ou o enfraquecimento do hábito da leitura em Fahrenheit. Nem toda ficção científica vai por este caminho, apesar de adorar Star Wars, não temos ali muito mais do que uma aventura. Ray Bradbury é um dos mestres do gênero literário, está lá no panteão reservado a poucos autores e Crônicas Marcianas é um de seus clássicos.
O livro utiliza uma estética narrativa independente de personagens principais, e num formato de diário, contando episódios esporádicos que vão se interligando. A obra gira em torno do planeta marte. Creio que na época da escrita do livro, temos as primeiras sondas sendo enviadas sistema solar adentro, e as especulações sobre o espaço em alta, algo muito parecido com os contos de Philip K. Dick em O pagamento. Por isso podemos perceber no livro uma constante polaridade, já que o entusiasmo da exploração espacial trazia de carona a bipolaridade e o perigo da hecatombe nuclear.
As críticas contidas no livro ultrapassam a guerra fria e tocam muito bem no imperialismo. É justamente neste mesmo período de guerra fria que vários países do terceiro mundo (em especial na África) estão na luta pela independência com vistas em se recuperarem da destruição causada pelos invasores europeus. A lógica imperialista é algo muito particular aos europeus, apesar de elementos sangrentos em outros povos, o desejo de dominação e reconstrução de uma sociedade em um local distante, é algo bem específico e singular. Este desejo colonizador é comum em nossas narrativas, seja quando nós vamos até eles ou quando eles vêm até nós (uma invasão alienígena, por exemplo). Dominar, construir, transferir, não repetir os erros, usar este território descoberto como uma possível folha em branco, ignorando a vida ali existente.
Bradbury monta seu texto com base neste desejo incontido de dominar, subjugar e moldar uma outra sociedade a “nossa” maneira. O colonialismo é o episódio mais famoso deste pensamento destruidor e intolerante, mas se olharmos para a guerra fria, perceberemos que as intervenções diretas em lugares como Vietnã, Budapeste ou América Latina, estão intimamente ligados a este desejo dominador. Acredito que o autor pode servir de apoio para uma reflexão que busca evitar esta postura política, tão marcada em nossa forma de pensar. Afinal de contas, é uma destruição consciente de elementos tão ricos, como o que fizeram com os africanos, em especial os escravizados, que tiveram suas culturas amassadas a ponto de tratarmos vários grupos tão distintos de uma mesma maneira. A pluralidade não é algo novo, o multiculturalismo é algo mais atuante do que se afirma, por isso ainda é importante buscar essa reflexão, mais tolerante e menos assassina.

domingo, 31 de agosto de 2014

A memória entre a política e a emoção - Luisa Passerini


Desde muito tempo o Homem buscou no passado um diálogo com seu tempo presente. Seja Bloch e sua colocação firme sobre todo trabalho histórico ser a respeito do tempo presente, Bloch era um medievalista e a situação pode ser tornar mais crítica quando pegamos os acontecimentos traumáticos das recentes ditaduras militares da América. Podem ser eventos passados, mas muito bem marcados no presente e ainda atuantes, como bem observou Vladimir Saflate, muitos cargos importantes ainda são geridos por pessoas que tiveram sua formação no período militar, ou ainda são tocados da mesma forma, com a mesma tecnologia burocrática e ética. Desta forma o século XX trouxe à tona a necessidade de uma história do tempo presente. É neste século, em especial na sua segunda metade, que vemos vários países dando atenção para a História ainda presente e fundando institutos preocupados com tal desafio. Mesmo que tenham surgido sob a sombra de alguma pasta ministerial, não demoraram muito em galgar sua independência e verem seus cargos institucionais ocupados por historiadores profissionais. Nesta direção podemos fazer eco a observação de Pieter Lagrou quando diz que a história não é exclusiva aos historiadores, pois enquanto questão de cidadania deve ser aberta para aqueles excluídos do círculo profissional da área. É algo que também faz parte dos cidadãos, por isso eles devem ser convidados para o debate.
Quando se trata de colocar a história em debate, mais do que deixando claro que se faz parte dela, mas que se fala algo que boa parte das pessoas viveram, o recurso oral talvez seja um dos mais fantásticos para isso. Neste sentido cresce cada vez mais a busca por recursos orais, como entrevistas. Outros meios menos diretos que por sorte acabam sobrevivendo a catástrofes, seja um diário ou um conjunto de cartas, também são utilizados. São formas de dialogar diretamente com algo difícil de rastrear e penetrar: as emoções e os sentimentos.
Apesar da caricatura que se faz desses elementos vistos como não racionais, eles são vitais para muitas situações. Como pensar na experiência do uso de violência em busca de fins políticos nos anos 1970, sem recorrer a um diálogo mais direto? Passerini trabalhou com entrevistas, dando voz as pessoas que participaram desse processo, dando a possibilidade de se explicarem, de refletirem e debaterem sobre um assunto ainda fresco, com feridas ainda abertas. Também foi por meio de cartas que conseguiu rastrear a construção histórica de elementos tão abstratos quanto a política, porém muito menos abordados. Quem sabe possamos pegar uma carona em Braudel e entendermos cada tempo como constituindo de suas peculiaridades inerentes a vontade humana, que por mais amada ou odiada que sejam estas peculiaridades, elas se mostram presentes no tempo, apesar de seu tempo de existência ser claramente limitado, não faz com que sejam menos atuantes. Braudel pensa na longa duração, nós já não pretendemos ver o tempo desta forma, porém o que está claro é a peculiaridade de cada tempo, e este não é um elemento bem marcado.
O que Passerini parece apontar, e Arlette Farge também, é para um campo caro aos historiadores, que talvez já foi palco de algumas aventuras com o nome de “história das mentalidades”, mas há coisas vitais em elementos pouco concretos dentro da investigação histórica, como os sentimentos, crenças, formas de pensar e agir que só podem ocorrer em determinado tempo. Será que as formas de encarar a violência ou sentimentos de amor sempre foram uniformes? É uma pergunta difícil de responder.

Referências:

LAGROU, Pieter. A história do tempo presente na Europa depois de 1945. in: 
SAFLATE, Vladimir. A ditadura venceu. in: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/vladimirsafatle/2014/04/1433855-a-ditadura-venceu.shtml
BRAUDEL, Fernand. História e ciências sociais. A longa duração. in: Escritos sobre a história. São Paulo: perspectiva, 2009.
FARGE, Alette. Lugares para a História. Belo Horizonte: autêntica, 2011.


sábado, 9 de agosto de 2014

Futuro Passado - Reinhart Koselleck


Quando Nietzsche jogou seu martelo na verdade, ficou impossível falar tal palavra e continuar com a mesma conotação anterior. Dizer isso em meio a concepção de que existe uma verdade absoluta da qual nos aproximamos conforme a sociedade progride, causo muito barulho, mudou muita coisa. Perigoso martelo este jogado no meio da roda de pessoas proclamadas, por elas mesmas e por outras, como detentoras da verdade, não se podia fingir se surto perante tamanho barulho do ruir de uma estátua que se acreditava tão sólida como a verdade. Desde então, e Foucault foi quem nos colocou isso da forma mais clara, se entende a verdade como uma construção, um jogo de poder, algo que não é encontrado, mas sim feito, criado. O homem é um criador, esta é sua maior qualidade, sua defesa perante os perigos do mundo. Diferente do tigre ele não tem garrafas e presas, ou da cobra com sua forma esguia e veneno, o homem para se defender inventa uma arma, uma casa, um muro, um deus para garantir sua existência. Estas invenções passam pelas teorias também, mas não podemos tomar o preciso termo “invenção” por mentira, afinal o avião e a lâmpada são invenções e estão ai tão reais e verdadeiras quanto você ou eu.
A história também passa por esse processo de verdade. Melhor, a concepção de história e o historicismo passam por este processo de legitimação e aceitação como verdade. Se pegarmos uma “história da história”, vamos perceber que a relação do homem para com o entendimento de seu passado mudou e muda através dos tempos, o que era válido antes já não é mais válido agora. Por exemplo a concepção de uma história cíclica atualmente revela um desconhecimento de teoria historiográfica dos mais graves. Se aceita uma verossimilhança com o passado, mas não uma repetição, tal concepção se mostra um absurdo. Porém durante algum tempo os gregos entendiam isto como uma verdade absoluta, a história para eles era por fim cíclica. Da mesma forma para o gregos jurar por algum de seus deuses, da mesma forma que ocorria até algum tempo atrás, era suficiente para provar que a afirmação era verdade. Hoje preferimos o cientificamente comprovado.
Do mesmo jeito que a verdade passa por um processo, a concepção de história também. Reinhart Koselleck, assim como outros sujeitos da historiografia alemã, parecem desconhecidos nesse cenário intelectual brasileiro marcado pela influência francesa. Acaba-se relevando que antes da França ser a meca da história, a Alemanha o era e os trabalhos de Leopold von Ranke são fundamentais para o conhecimento histórico enquanto acadêmico. Mesmo sendo fundamental, a obra de Koselleck ainda é um tanto quanto periférica se compararmos com outros autores, em especial os franceses. Claro, não podemos esquecer que seu trabalho é bem mais específico que o de um Deleuze.
Koselleck trata da relação da humanidade (ocidental) com o conceito de história. Como ele bem ilustra, nem sempre se entendeu da mesma, elemento de fácil percepção ao verificarmos o uso de duas palavras distintas na língua alemã para se referir a história. O termo mais antigo é o Historie, muito mais próximo lexicalmente a sua origem latina do que o termo atual Geschichte. A palavra Historie se preza muito mais a uma história que serve de lição moral, de doutrinamento, de indicação do que fazer, talvez dai venha a concepção de que não se sabe para onde vai sem saber de onde veio – o que sabemos não servir para todos e tudo. Da mesma forma que esta palavra antiga já não é mais usada, seu conceito começa por volta do século XVIII a ser substituído por Geschichte.
A palavra Geschichte tem sua raiz etimológica na palavra acontecimento (geschehen). De certa forma teremos a mudança de uma concepção de história que se prezava antes em ajudar as pessoas nas suas decisões futuras, enquanto mais tarde muda para um estudo dos acontecimentos, logo tudo que ocorreu no passado pode fazer parte da história. Mais do que isso, o termo Historie está muito mais ligado a ideia de que o estudo do passado nos indica qual decisões tomar, por isso se liga a Historia magistra vitae, algo como “história senhora da vida”, já que o estudo do passado seria nosso mestre.
Já o termo Geschichte se mostra muito mais aberto e coerente com nossa modernidade. Pois o desenrolar histórico se faz por meio de acontecimentos. A revolução, o progresso, o destino e o desenvolvimento são palavras ligadas diretamente a nossa concepção do desenrolar histórico. Se tomarmos por conta de que a revolução é feita pelo povo, o progresso pela humanidade e o destino e o desenvolvimento pelo homem, vamos perceber que esta mudança léxica leva a uma nova forma de lidar com este passado, de interpretá-lo. Neste sentido o homem é muito mais um senhor de seus atos, capaz de interferir no seu tempo e na natureza pois, sendo o sujeito histórico que é, pode interferir e decidir como serão os acontecimentos. Não nos cabe mais pensar o passado ignorando a construção historiográfica, tão pouco ignorar o passado acreditando ser este o nosso método para construir o futuro da forma mais eficiente e desejada possível. Desde então todos se colocam como altares da história, acreditando que o simples uso do passado lhes garante tal status. O uso do passado cria formas no presente. Nossa experiência se liga a expectativa.

sexta-feira, 20 de junho de 2014

Nebraska - Alexander Payne (dir.)

     Ao mesmo tempo que o cinema americano é único por criar filmes e narrativas muito belas, bem elaboradas e de um nível muito particular, há na maior parte dos filmes uma repetição de mais do mesmo. Nos últimos tempos é perceptível nos filmes americanos mais sérios, como por exemplo alguns ganhadores do Oscar, tentativas de renovação. Querendo ou não Crash – no limite fez isso ao abordar vários problemas presentes na sociedade americana. Mesmo que não tenham dado conta do recado, a tentativa foi feita e deixaram clara uma necessidade estética de renovação e um caminho possível.
     Nebraska segue no mesmo caminho, sua escolha pelo preto e branco já é algo que indica esta tentativa e o objetivo de um caminho no mínimo pouco usual. Não apenas isso como também abordar temas tão caros aos EUA. Cabe abrir um parênteses aqui antes de continuar que é, independente do que se diga dos EUA, eles são sem dúvida uma referência desde algum tempo, sem nenhuma objeção. Por outro lado, o caráter dessa referência é assunto para outros debates necessários como o feito no livro O imperialismo sedutor. Porém, os anos 2000 e o que veio depois (UE, BRICs, etc) mostraram que este país já não é mais tão dono do mundo quanto era antes.
     É ai que podemos começar a fazer alguma análise do filme, e é importante deixar claro que isto não é nenhuma decifração subliminar de onde os envolvidos com o filme quiseram chegar, mas sim uma visão possível, um ponto de vista entre milhares sobre o filme. Primeiro fato a ser constatado, temos pelo menos três gerações muito bem desenhadas no filme, o personagem principal que aparece alinhado com as pessoas que participaram, ou quase, da segunda guerra mundial e guerra da Coréia, que é querendo ou não um ponto de virada, a geração dos 1970, que já sobreviveu e passou pelos conturbados anos 1960, e a turma que existe depois de 1990.
     Mais do que o Alzheimer e a inocência com o personagem chave do filme que quer porque quer buscar seu prêmio numa distante cidade, temos nele a representação de um tempo já passado e que sobrevive nos arquivos e na saudade (ainda presente na memória e lembrança das pessoas participantes deste tempo), ele é fruto desta época quase apagada. Da mesma forma que ele está decrépito e a ponto de deixar de existir, o tempo do qual ele fez parte também está lá. Algo que fica claro conforme seu filho vai descobrindo o passado de seus pais (algo sempre revelador), é que ele já foi muito mais do que um simples senhor respeitável que volta para casa após um dia de trabalho, podemos ir na crista de Robert Crumb e enxergar um certo brilho no passado americano que vai se extinguindo e sumindo conforme o tempo passa.
     Por outro lado os dois filhos do personagem principal do filme seriam um segunda geração iludida e presa nas promessas de uma carreira promissora e abuso dos bens de consumo, seja enquanto apresentador de sucesso ou trabalhador empenhado. De alguma forma as promessas são feitas e cada vez mais se sente estar próximo a elas, ao mesmo tempo que algo importante esteja faltando, nem que seja sua família ou namorada. Numa ponta final temos pessoas que nada mais querem do que beber cerveja, ver TV e não fazer absolutamente nada durante o resto de sua vida, “curtir geral” seria mais do que uma meta, é uma responsabilidade.
     De certa forma podemos perceber em Nebraska um diálogo da sociedade americana atual com o seu passado, mais do que fazer uma crítica é preciso fazer uma análise, sentar no divã e olhar para trás. Afinal os tempos eram duros, mas haviam coisas gloriosas. Enquanto a atualidade é fácil, mas passa a sincera sensação de estar desmoronando pelas bordas, seja pelo desemprego, pela clara impossibilidade de crescimento profissional, quanto pelo esvaziamento cada vez mais claro das cidades, seja pela via expressa quanto pelo êxodo rural. Não só temos a dificuldade de envelhecer, como temos também a dificuldade de sobreviver hoje em dia ilustrados no filme, problema pelo qual todos acabam passando. Neste sentido Nebraska aparece como um filme que busca dialogar com a sociedade americana atual.



quarta-feira, 18 de junho de 2014

O Oriente das Cruzadas - George Tate

     A Idade Média é um dos períodos mais interessantes e incompreendidos da história, parecendo fazer uma ponte entre o mundo antigo e o moderno, o período médio foi conturbado, plural e nem tão obscuro e atrasado quanto se supõe. Nada disto apaga atrocidades e confusões, a exemplo das Cruzadas, algo tão famoso e pouco recordado por nós, “ocidentais”.
     O livro de George Tate não se dirige exclusivamente a especialistas, pode ser facilmente lido por qualquer curioso, é um resumão de como ocorreram estas cruzadas. Seu ponto mais inovador é o enfoque num ponto de vista “oriental”, dando menor enfase ao ponto de vista cristão europeu. Problemas sérios das cruzadas são mostrados, como por exemplo o curioso fato de que os bizantinos – também cristãos – se viam mais próximos e semelhantes aos árabes, enxergando os francos como um povo bárbaro e incivilizado, e personalidades como Renaud de Chântillon acabam não fugindo da ilustração do cavaleiro sanguinário e com um certo grau de lunático, devido a suas empreitadas guerreiras desprovidas de qualquer senso estratégico. Para Renaud de Châtillon, e a bem da verdade para boa parte dos cruzados, o fato de carregarem o símbolo de Deus os impediria de perder, tal qual ocorrera com Constantino I.
     O mais fantástico do livro é sua abordagem que não coloca o “ocidente” num pedestal até porque dividir o mundo entre “ocidente” e “oriente” ainda parece ser algo complicado para a época. Boa parte das fontes e citações são de historiadores árabes da época ou judeus, isto sem abrir mão das fontes europeias sobre o assunto. Desta forma temos um trabalho mais sério e conciso do que se poderia esperar de uma obra voltada para não especialistas em história.
     Da mesma forma que mostra todo o lado nada glamouroso das cruzadas, o autor aborda de maneira séria o assunto, deixando o sensacionalismo histórico de lado, a ilustração dos cavaleiros cruzados como simples fanáticos religiosos que levaram sorte e conseguiram conquistar Jerusalém como pura sorte, se mostra incorreta. Devido a seu olhar para o outro lado do conflito, podemos perceber que brigas internas entre os árabes, terceiros e quartos elementos também a espreita de novos territórios, ajudaram e muito os cruzados nas suas conquistas. Muitas vezes vistos como problemas menos urgentes, o senso estratégico levava a decisão de uma tolerância maior com as movimentações na Palestina, isso contudo não pode levar ao entendimento de uma fraqueza ou entrega destes territórios para o cavaleiros de cristo. Ao mesmo tempo que os europeus tinham um exército significativamente menos numeroso e poderoso que o árabe, em especial pelo regresso de boa parte dos cristãos após a conquista da terra santa, eles possuíam a vantagem da armadura, tornando seu exército (principalmente a cavalaria), mais pesada e robusta que a árabe – por sua vez muito mais numerosa. Desta forma os generais árabes sabiam que a reconquista daqueles reinos latinos do oriente, não eram uma tarefa impossível, mas seria da mesma forma muito dura e era difícil precisar a força de seu golpe.
     Pela abordagem do filme Kingdom of Heaven de Ridley Scott, há uma influência clara do livro de Tate. Além de pensarmos a idade média e as cruzadas por meio desta obra, podemos também começar um diálogo sobre um tema caro para os historiadores, escrever obras que não sejam dirigidas para o público especializado, o que querendo ou não se mostra um desafio. Apesar disso fazer uso da crença comum de que historiadores não sabem escrever para não historiadores, se mostra um argumento pouco sólido, já que obras como O queijo e os vermes, História do Brasil para ocupados, as “Eras” de Hobsbawn, boa parte do trabalho de Boris Fausto e revistas como a RHBN, deixam clara essa possibilidade e existência.

terça-feira, 20 de maio de 2014

Sorte Cega - K. Kieslowski


Apesar da linguagem mais difícil de Kieslowski, seu cinema busca dialogar com a existência humana mantendo um diálogo com o sujeito comum, ordinário, humilde. Seus personagens dificilmente são grandes personalidades, quando muito são figuras que estariam em segundo plano de alguma pessoa que ocupa uma posição social de maior prestígio, a exemplo da mulher que é a viúva de um grande maestro (caso de A liberdade é azul). Em Sorte Cega, Kieslowski procura dialogar com a aleatoriedade, as múltiplas possibilidades que a vida pode colocar.
O roteiro é basicamente focado em mostrar três possibilidades numa simples viagem de trem. O fato de pegar ou não o trem na estação pode implicar em três destinos diferentes: se tornar um membro do partido comunista polonês, militar na oposição anti-comunista polonesa e a última opção seria concluir seus estudos em medicina e seguir uma vida pacata evitando envolvimento algum com a situação política polonesa.
Mesmo lidando com elementos como os caminhos possíveis da vida, há no filme um forte caráter político, e por este motivo o filme concluído em 1981 foi lançado apenas em 1987, devido as censuras do governo polonês da época. O que está comum em todas as possibilidades do filme é o fundo político, já que a adesão ao partido comunista está ligado de alguma forma em realizar uma mudança por dentro das entranhas do sistema político polonês, a militância anti-comunista se dá pelo desejo em transformar a realidade polonesa de uma forma muito mais combativa, direta e militante, enquanto no último caso, por mais que Witek fuga dos elementos políticos ele se vê cercado por eles, sendo forçado a tomar alguma posição quando da condenação do filho de seu mentor, que fica impossibilitado de viajar para a Líbia num importante congresso.
O curioso é que na primeira opção, da qual Witek escolhe aderir ao partido comunista, é o momento de menor ação política no filme, mostrando o partido como algo burocrático e que não responde aos desejos da população. E por mais claro e lúcido que possam ser os pedidos, a estrutura partidária se mostra ineficiente e seus membros ganham contornos cada vez mais atrapalhado e infantil. Conforme Witek ganha prestígio no partido, ele se torna cada vez mais distante do mundo real que o cerca. O filme parece ilustrar que a possibilidades de mudança da situação polonesa por meio do partido como pouquíssimo eficiente.
Na segunda possibilidade, a adesão ao movimento de oposição parece buscar responder um pouco do que foi posto na primeira possibilidade. Se não dá certo pelo partido, poderia dar certo pela resistência organizada. Witek vai tomar contato com os grupos de oposição, mas é neste momento em que ele mais terá problemas e precisará se dobrar em dois, a situação de constante ameaça e perseguição se mostram cansativas, levando a pressões para entregar seus colegas e também criando um clima de desconfiança muito grande. Tornando esta situação não tão eficiente em relação as anteriores, e de um custo pessoal muito alto.
Quando resolve adotar uma vida medíocre sem nenhum envolvimento com a política, Witek acaba sendo pego de surpresa por ela, sendo obrigado a tomar uma posição e tendo o final mais trágico de todos.
Podemos entender que Kieslowski buscava dialogar com a situação política da Polônia na época da filmagem, já que é nos primeiros anos de 1980 que o Solidariedade está com tudo, sendo o primeiro sindicato autônomo dentro do bloco socialista. Como era um momento de intensos atritos políticos, Kieslowski parece estar deixando claro que não havia muito como não se envolver ou se posicionar durante tais eventos na mesa. Também mais do que isso, fica no ar a ideia de que não se pode evitar alguns elementos, como no caso do filme pegar ou não o trem, e partindo destes elementos inevitáveis o roteiro se desenrola. No caso de Sorte Cega o elemento constante e que não se evita fugir é o elemento político, presente em todas as três possibilidades.

terça-feira, 6 de maio de 2014

Reflexões sobre o socialismo - Maurício Tragtenberg

   Que a Revolução Russa e suas consequências são algo importante, não restam dúvidas. Os estudos sobre este momento e experiência tão particular merecem sim serem estudados. A União Soviética foi detentora de coisas impressionantes, ainda são o país com o maior quadro de medalhas nas olimpíadas, desenvolveram o setor espacial de maneira impar, conseguiram praticamente erradicar o analfabetismo, além de uma série de outras coisas louváveis como filmes do naipe de Solaris. Porém nada disso apaga o caráter autoritário que acompanhou a existência da URSS. Como bem ilustra Tragtenberg, a URSS acabou buscando um monopólio do que seria o socialismo, caráter perceptível pela sua política do partido único e não socialização dos meios de produção (por sinal, ponto chave do socialismo).
      O livro mantém um caráter de fácil diálogo com o leitor, trazendo dados ainda hoje pouco conhecidos e abordados, seja por socialistas ou não socialistas, e reflexões conclusivas sobre estes episódios, a exemplo do levante de Budapeste, onde os húngaros pediam a pose de novo primeiro ministro, por ser Imre Nagy um verdadeiro socialista; até o caso mais desconhecido do levante de trabalhadores, em sua maioria camponeses, em torno da figura de Nestor Mahkno, que ocorre em paralelo a Revolução Russa, e posteriormente são massacrados pelo exército vermelho ao negarem o julgo soviético. O que temos claro é que a oposição mais atuante contra o regime totalitário vinha de pessoas que acreditavam no socialismo, e não de gente que desejava implantar o capitalismo. Esta dualidade que acaba se fazendo automaticamente, indica ser fruto de parca interpretação do que foi a Guerra Fria. Afinal, os interesses dos dirigentes políticos não são os mesmos das pessoas comuns.
    Tragtenberg chama atenção para o fato de as empresas soviéticas funcionarem por meio de salários, visando criar um competitividade e estar lado a lado com as economias de mercado capitalista, fato que somado ao Estado deter os meios de produção caracterizarem a economia soviética como de capitalismo de Estado.
     O ponto mais positivo do livro é a busca pela quebra de um monopólio da política, trazendo ela para mais próxima do trabalhador, deixando claro que este não depende de partido ou vanguarda política alguma para conduzir suas lutas. Os trabalhadores sabem e tem capacidade para conduzirem suas necessidades e problemas. Deixando claro desta forma que um regime autoritário se mostra sempre autoritário, independente de sua cor ou justificativa. Assim como partido algum irá além da reforma política, quando muito.
     As reflexões de Tragtenberg ocorrem enquanto a união soviética ainda existia e de uma forma ou de outra ainda dominava muito do cenário político, apesar de demonstrar cada vez mais sua decrepitude e clara não resposta aos anseios populares – questões que levaram a seu fim. Dai a necessidade de uma clareza pessoal referente a uma teoria política que pretende dar conta de transformar a realidade capitalista que se vive. E como a autonomia se mostra importante para tudo isto, já que afinal, ninguém precisa dizer as pessoas quais seus problemas e indicar soluções prontas.

terça-feira, 22 de abril de 2014

Como aborrecer um guarda e outras estórias - Efraim Kishon


Ler é diversão. Por mais óbvio que seja esta afirmação, algumas vezes precisamos lembrar disso. Poucos desenvolvem seu hábito de leitura com coisas sérias, começamos com gibis, reportagens e outras coisas menos rebuscadas e trabalhados como os livros clássicos. Chartier coloca na introdução da “Ordem dos Livros”, de que afinal a prática da leitura é vadia e preguiçosa, por isso se mostra uma afronta nesse mundo apresado e trabalhador que vivemos. Ler por diversão mais do que por trabalho, diferente de pessoas ligadas as tais ciências humanas, é algo que acaba pedindo certo esforço, seja pelo tempo quanto pela vontade. Quando a leitura se dá pela diversão, o ato de ler é pela leitura, não por uma obrigação, se lê porque se quer ler.
O exotismo de Efraim Kishon lhe garantiu uma posição de crédito na minha estante, não sabia quando, mas queria ler aquela obra de título provocativo, afinal guardas são autoridades, irritá-los e tirar um sarro da cara deles é algo libertador, o riso, com todas as suas nuances, liberta coisas presas que precisamos soltar, a exemplo de rir das figuras de autoridade seja ela qual for. E ele como todo bom judeu engraçadinho, está liberado para fazer várias piadas sobre seu povo sem dar margem a preconceitos ou mal entendidos.
É importante deixar claro de antemão que Efraim Kishon não pode ser categorizado como um expert em política ou algo do tipo, tão pouco tem um senso social muito aprofundado, quer mesmo é cutucar todo mundo, provocar o riso sem cair nas tradicionais piadas repetidas (Loira, português, filho gay...), isso faz com que ele vá para várias direções, e brinque com o povo israelense e tire saro dele. Usa a fórmula de falar da aldeia para ser universal, até porque sempre enxergamos nosso cotidiano como um universo, por ser assim mesmo, cheio de desdobramentos possíveis.
Ler seus escritos procurando alguma lição profunda escondida, talvez seja um grande erro, Kishon quer mesmo é rir da condição humana, e das situações caricatas que acabam se mostrando ao longo do nosso dia a dia. Dizer que ele é um gênio pode soar exagero, mas sua escrita fácil e seu sarcasmo incontido servem muito bem para o exercício da leitura, afinal ler é divertido, não podemos esquecer disso.

Adendo: de acordo com minhas investigações internáuticas, soube que a produção de Kishon na área de teatro, televisão e cinema era intensa. Buscando algo sobre ele me deparei com um trecho de um filme seu chamado Sallah Shabati, que conta a vida de um judeu oriental tentando se adaptar a nova vida em Israel. O filme parece fazer piada da situação israelense após sua criação, já que até hoje todo judeu tem direito a cidadania israelense, porém quando quase todos os judeus do mundo vão para o mesmo lugar ao mesmo tempo, problemas acontecem para os que chegam e os que já estão. De qualquer forma, o filme não parece ser genial, mas a cena da música é linda.

domingo, 30 de março de 2014

Duas Narrativas Fantásticas - Fiódor Dostoiévski


Com sua saída do cárcere, Dostoievski parece intensificar sua produção literária, este período é o do surgimento de seus grandes volumes, O idiota, Os demônios, Crime e castigo são apenas alguns exemplos deste segundo período na vida do autor. Junto com todo este lado óbvio de um escritor, Fiódor Dostoievski era fascinado por jornais. Havia já empreendido dois, Tempo e Época, que acabaram quebrando. Após estas duas tentativas faz sua terceira, O Diário de um escritor, que se tornou finalmente um sucesso. Todo texto publicado neste diário era de sua autoria.
É interessante que por ser uma narrativa mais corriqueira, as coisas precisam se desenvolver logo, abrindo pouco espaço para discussões aprofundadas ou elaboradas como observamos em Crime e castigo ou em Os irmãos Karamázov. Estas duas narrativas fantásticas são bem particulares e distintas entre si, por isso serão tratadas em separado. Ademais, já é importante frisar que estas análises são pouco originais e se restringem a obra do autor – mero exercício, pois não há grande embasamento aqui.
A dócil
Rastrear Dostoievski sempre se mostrou uma tarefa difícil, num texto ele arregala os olhos para os atrasos da Rússia, noutro afirma que o Czar, apesar de tudo, é necessário para manter um desenvolvimento original russo, diferente do europeu ocidentalizado tomado como exemplo por boa parte da intelligentsia russa. Não podemos trata-lo como um simples “progressista”, termo muito usado por aí, nem como um apoiador das tradições, da família e da propriedade. Entre todas essas confusões possíveis para nossas mentes tão acostumadas com rótulos prontos, sabe-se que Dostoievski não via no sexo feminino uma inferioridade natural em relação ao masculino, pensamento por sinal muito comum em seu tempo.
Seria exagero colocá-lo como um feminista, mas muito maior seria colocá-lo como um típico machista. Sua aversão a prostituição se dá por mais do que um cunho moral, ele parece ver nesta prática uma manutenção da posição desprivilegiada da mulher na sociedade do século XIX, serviente ao homem.
A personagem de A dócil, como tantas outras personagens femininas de suas obras, se apresenta como uma garota tímida, recatada, inocente, e por estas suas qualidades, apaixonante! O dono da pensão se enamora por ela, mas a relação entre os dois não se dá pelo amor, mas sim por algo parecido a um acordo. Ele a salva de um casamento terrível, e ela em troca aceita o papel de esposa. O curioso é que ao longo de toda história o casal se conflita. E dela se espera justamente esta conduta de mulher do século XIX, calada, que não ousa discordar (abertamente) de seu marido e sempre disponível.
Junto com este quadro que podemos esperar para época, os dois se respeitam e desenvolvem uma relação particular, apesar de todos os seus pesares, onde o marido parece se esforçar para não passar por cima dela. Em suma, o texto parece apresentar contornos para aquilo que chamaríamos de machista, mas não demonstra ser esta sua intenção, afinal ela não veste exclusivamente as vestes de uma mulher dócil, por mais próximo a isto que ela alcance e se represente. Ele por sua vez não seria um sujeito que milita contra o machismo. O foco se demonstra muito mais religioso, especialmente pelo fato da santa. Mas alguns contornos estão ali e é interessante olhar para eles. Basicamente os personagens femininos de Dostoievski ou são extremamente tímidas que pendem realmente a uma docilidade, ou acabam se mostrando altamente independentes, não ficando claro com qual tipo de mulher ele simpatizaria mais.
O sonho de um homem ridículo
O inconsciente gera questionamentos desde muito tempo, por isso a ocupação tão grande da humanidade com seus sonhos, já que este seria o elo entre o consciente e o inconsciente. Nossa tradição freudiana nos leva a entender os sonhos como reveladores, em especial de desejos. O personagem aqui, tal qual como em várias outras histórias, demonstra ser extremamente perturbado pela sua existência. Não parece acreditar em nada.
Mesmo com seu começo indicando mostrar aquilo que deixou Dostoievski famoso, ele acaba se direcionando para o tema da sociedade ideal. Acaba caindo na ideia de que havia uma sociedade perfeita a princípio, que depois sofreu alguma corrupção em seu sistema, alguma mentira contada, alguma trapaça feita, que acabou corrompendo toda uma sociedade.
Este tipo de raciocínio é marcado pelo pensamento cristão, do qual o russo sempre fora adepto, de Adão e Eva sendo corrompidos pela serpente, levando a todas as dores posteriores da humanidade – seja engravidar ou morrer. Ao fim da história o que podemos interpretar é que o sujeito desejava destruir a si mesmo como se pretende destruir o mundo em que se vive, pois tal qual o personagem, ambos são doentios. Mas a existência de uma sociedade melhor em algum momento, parece demonstrar ser possível novamente restaurar estes danos, afinal, este equilíbrio já foi alcançado uma vez e por isso seria possível.
A religiosidade imprime um forte caráter no escritor russo, a participa em praticamente todos esquemas de sociedade futura. Este sonho parece lidar com este desejo, e revela como ele pode ser ridículo de ser pensado. Mas o questionamento que fica é, não é o que todos nós pensamos, numa sociedade ideal? Seja pela campo político ou seja pelo campo religioso?

segunda-feira, 24 de março de 2014

Sobre o conceito da história - Walter Benjamin

          Apesar de Walter Benjamin raramente ser indicado como historiador, seus trabalhos acabam sendo muito significativos neste campo, especialmente quem desenvolve interesse pela estética e literatura. Hannah Arendt deixa bem claro no seu Homens em tempos sombrios a paixão de Benjamin pelo passado. Seu relacionamento com historiadores e essa sua paixão acabaram levando de uma forma ou de outra a sua tese sobre o conceito da história.
          Como se sabe Benjamin tem seu pensamento marcado pelo materialismo dialético, porém sempre vale lembrar que esta delimitação teórica adotada e reconhecida nele, ocorria de maneira não ortodoxa.
Quando se pensa na história é necessário pensar o tempo. Com o desenvolvimento da teoria materialista histórica dialética, teremos uma forma de compreender e explicar a história. Temos que entender que nessa época a escola dos annales está dando seus primeiros passos e a historiografia é marcada pelos alemães e a herança de Ranke. O lema era wie es eigentlich gewesen (como isto realmente aconteceu), o que acabava limitando o pensamento histórico devido a necessidade de erigir apenas uma verdade, que depende de uma única forma de ver o mundo, que depende de pouca inventividade. Benjamin também era influenciado por Nietzsche, por isso sua visão crítica para uma única metodologia de buscar esta verdade e até mesmo por esta busca da “verdade verdadeira”. Afinal de contas, o materialismo histórico dialético nos deixa claro que as relações entre os homens são plurais demais para reduzirmos a uma única forma de ver.
          Observando o quadro teórico da época, as teorias desenvolvidas por Marx acabavam se mostrando uma ótima opção para a composição de uma história crítica, que se prezasse a mais do que um acúmulo de fatos. Porém este método materialismo histórico traz uma relação importante da modernidade, uma relação temporal. Os historiadores lidam com o tempo, por isso é fundamental pensar sobre ele. Neste ponto somos marcados por formas de se perceber no tempo. A noção de futuro e progresso nos faz crer que somos agentes da história, Marx faz isso ao conclamar a união dos proletários, da mesma forma que as esperanças depositadas no avanço da ciência nos levam a crer que podemos conduzir nosso destino. A modernidade pretendia dominar a natureza, o tempo é algo natural também, por isso não é estranho este desejo por dominá-lo, conduzi-lo, de interferir na história. Há um futuro a ser construído, e este futuro se faz no nosso presente marcado pelo passado. Tal qual fala Benjamin “não existem, nas vozes a que agora damos ouvidos, ecos de vozes que emudeceram?”1. Apesar desta relação com o tempo que já passou, qualquer caráter cíclico não está aqui abarcado.
          Temos o reconhecimento de que batalhas presentes se dão pelo passado, seja o comércio turístico, questões como as cotas e o racismo que marca a sociedade brasileira, o machismo de cada dia e até mesmo pessoas desejosas de um retorno à uma sociedade segregada que privilegia uns em detrimento de outros porque marcham com Deus e a família, por exemplo. Usam do passado e se apoiam na história, independente deste apoio se dar pela mão direita ou esquerda, somos todos modernos e por isso buscamos este chão, este apoio. Este suporte buscado na história é importante deixar claro, não faz que o simples ato de utilizar-se do passado seja o mesmo que utilizar-se da história. O passado já não existe mais, já ocorreu, restou apenas a reminiscência, o presente ai está nos deixando marcas conforme passa por nós, e o futuro se mostra o mais abstrato e incerto de todos, provavelmente por isso qualquer previsão sobre o que irá acontecer tem chances limitadas de acerto.
          O historiador se apropria dos escombros do passado, e a partir destes fatos e dados consegue compor a história se apropriando “de uma recordação, [que] relampeja no momento do perigo”2. É necessário partir de algum ponto concreto, afinal o conhecimento histórico tem contornos de ciência, e o primeiro passo dado no sólido é recebido pelo presente. Desta forma o presente é que coloca quais os perigos, quais as dúvidas e batalhas que ocorrem, a especialidade do historiador é olhar para este passado, a esta gigante galeria escura onde só se pode entrar com uma caixa de fósforos e ascendê-los um de cada vez. Nós historiadores pegamos os destroços do sólido que desmanchou no ar, e tentamos compreender como e para onde podemos ir. Nada disto ocorre de forma unânime.

sábado, 8 de março de 2014

Clube de Compras Dallas - Jean-Marc Vallée (dir.)


Quando Michel Foucault morreu, se evitou por um tempo a relação entre seu óbito e a AIDS, quando Magic Johnson admitiu estar com HIV já faziam alguns anos que ele estava nesta situação, a lista não para por ai, Cazuza, Renato Russo, Freddy Mercury, todos eles evitaram tocar no assunto, seja em maior ou menor grau. O mais estranho é que a AIDS foi uma doença que carregou uma carga moral muito grande. Primeiro as pessoas que apresentavam a doença eram majoritariamente homossexuais, tornando personalidades como Rocky Hudson uma “decepção”, pois até então ele sempre fora posto como um exemplo de masculinidade, o filme ilustra isto nos seus primeiros minutos. Já basta toda homofobia, que acredito ser menor atualmente, que os homossexuais acabam lidando no dia a dia, doenças venéreas sempre acabam trazendo este cunho moral devido a nossa visão conturbada sobre o sexo. Imagine uma síndrome propagandeada como exclusiva a gays. Era tudo que muitos preconceituosos esperavam. E realmente utilizaram a AIDS como uma forma de atacar a comunidade homossexual, declarações como a de que era um flagelo de Deus não eram incomuns.
Neste sentido o Dallas Buyers Club me surpreendeu ao tratar da AIDS de uma maneira bem política, especialmente por se tratar de um filme holliwoodiano cujo ator principal faz geralmente o papel de algum galã, estar ali como o caubói bronco, pobre e fora de moda. Quando surgiu a doença ninguém sabia ao certo como ela funcionava e até hoje pouco se sabe de sua origem, a teoria mais aceita é a de que houve uma contaminação de caçadores ao tomarem contato repetido com o sangue de macacos infectados com uma versão animal do vírus, e as viagens aéreas somadas ao sexo casual sem preservativos se encarregaram do resto. Há também as teorias de que a doença foi criada para exterminar pessoas, especialmente homossexuais. De qualquer forma, quando ela chegou não se sabia muito bem o que fazer.
A princípio os preconceitos do caubói não lhe permitiam aceitar sua doença, o levando a negá-la até chegar num ponto crítico. Quando ele percebe que já não havia mais o que fazer, aceita sua condição e busca uma forma de sobreviver. A medicação que vinha sendo usada na época e parece ainda fazer parte do coquetel, era o AZT, como o filme bem coloca, esta é uma medicação complicada, pois de maneira resumida, parece atacar tanto o que há de ruim quando o que há de bom, causando uma série de danos colaterais terríveis. Ao tomar conhecimento disso, Ron Woodrof inicia com auxílio de um médico com licença casada (onde infelizmente o filme não explica a situação que levou à cassação) um tratamento alternativo com medicamentos proibidos de serem comercializados nos EUA. E é aqui que as coisas começam a se mostrar sujas.
Enquanto Woodrof está apenas interessado em financiar seu tratamento e estilo de vida com a venda de medicamentos que funcionam melhor que o AZT, não teremos grandes problemas, porém devido aos acontecimentos – em especial a morte de seu sócio – e a falta de medicamentos apropriados para o tratamento da doença, ele vai deixando de lado esta questão pessoal e percebendo que ela está para além de algo isolado, se dá conta de que mais pessoas estão numa situação tão desesperadora quanto a sua, pessoas morrendo, e o órgão regulador está muito mais preocupado em garantir o mercado de uma empresa do que manter estas pessoas vivas (um belo caso de biopolítica).
O absurdo, e que pouco debatemos sobre, é que o paciente acaba ficando sem direito de escolha sobre seu tratamento, obrigando-o a seguir algo que não necessariamente lhe traz resultados (havendo o risco de tomar até mesmo um placebo). Temos ilustrado muito bem no filme, como o governo e as grandes corporações, buscam controlar ao máximo a vida da população, de forma clara a garantir seus lucros, independente da vida biológica destas pessoas, e o mais impressionante, sob a alcunha de garantir um procedimento seguro de saúde. Temos o conceito de segurança utilizado como um instrumento de poder.
Talvez o Clube de Compradores de Dallas seja um dos filmes que trata de forma clara os problemas da gigante indústria farmacêutica, de longe a maior produtora de drogas e por onde passam milhões. Será que eles estão preocupados com a nossa saúde? Será que as correntes médicas apoiadas na forte medicação, seja para emagrecer ou até mesmo da criança “hiperativa”, estão mesmo preocupadas com a nossa saúde? Temos de deixar de ser inocentes e entendermos que as amostras grátis enviadas aos médicos não são pela preocupação com pessoas, afinal indústria se preocupa em ganhar dinheiro.

quinta-feira, 6 de março de 2014

Isto não é um cachimbo - Michel Foucault


Tudo começa com uma piada onde nos perguntamos, “como assim não é um cachimbo?”, até podemos tentar olhar atrás do quadro buscando uma resposta, mas não vamos ver nada mais do que o verso de uma pintura. O que deve ser analisado está ali na frente e nada mais, não há nada escondido, pelo contrário, a dica até mesmo é dada para nos ajudar a entender. Para evitar qualquer dúvida se escreveu afirmando que aquilo não é um cachimbo. Magritte certa vez declarou sobre o quadro inquirindo seus inquisidores: “vocês conseguem encher meu cachimbo de tabaco? Conseguem fumá-lo?”. A resposta é óbvia, aquilo que de certa forma não têm segredo algum, nada disso é possível, afinal isto é a representação de um cachimbo, não o cachimbo em si. Para iniciar a conversa, de certa forma não se diz a verdade, mas se está longe de mentir.
Se alguém desejasse colocar um ponto final nesta conversa e se esquivar do assunto diria que a “verdade é relativa para cada pessoa”, quando o problema é mais profundo. O que torna uma verdade “a” verdade? Independente de ser para todos ou para um grupo, por muito tempo ou por pouco? Sabemos que aquilo é um cachimbo, nossa dúvida se dá na afirmação de que aquilo não é um cachimbo, mesmo se parecendo com um, não passa de sua representação, a representação por sua vez não é verdadeira mais sim verossimilhante. De maneira simples a verdade o é, a verossimilhança indica ser – ou seja não é, mas tudo indica que o seja.
Neste sentido a produção da verdade entra neste jogo com a verossimilhança. Um historiador por exemplo, não consegue recuperar o passado, por melhor que seja seu trabalho, ele não consegue trazer o passado à tona, reproduzi-lo, senti-lo, na melhor das hipóteses tudo que se consegue é riscar um fósforo por vez numa sala escura, como ilustrou Benjamin, permitindo observar fragmentos e trazer à tona alguns elementos, nunca o passado inteiro. Não se pode reviver o passado, na melhor das hipóteses, o que se consegue é espiá-lo. Dai que neste sentido o historiador não tem como resgatar o passado no sentido muitas vezes dado a história, o que ele consegue fazer é a partir de suas evidências formular uma representação de como pode ter sido aquele passado, ou seja, não se faz literatura, mas sua produção de verdade se dá pela verossimilhança. Da mesma forma que a pintura não é um cachimbo mas indica ser um cachimbo, um historiador através de suas fontes indicará o passado, sem contudo ser aquilo o passado, é um texto produzido através de um sério estudo sobre como algo ocorreu, mas não é aquele evento, não é aquela sensação. Tal qual um relato não é o acontecimento, mas sim uma representação daquele acontecimento. Quando muito, se lida com a memória – mas esta também “engana”.
Nada disso é a verdade em sua forma pura (por sinal fica uma dica, pare de buscar “a" verdade absoluta) mas só por não se-la, isto não significa ser seu antônimo, temos por isso a verossimilhança. Se representou de maneira tão convincente, tão bem elaborada que chegamos a compreender aquilo como a verdade, mesmo que tal qual o cachimbo, sabemos que não é, que não dá conta do todo, já que afinal, por mais parecido que seja com um cachimbo, é impossível enche-lo de tabaco e fumar, por mais parecido com o passado, não o é. Tudo não passa de uma ilustração de algo que já não existe mais. Este jogo da verossimilhança não se aplica unicamente ao conhecimento histórico, mas sim a produção da verdade onde quer que ela ocorra.

sábado, 1 de março de 2014

V de Vingança - Alan Moore (roteiro)


É impressionante como algo tão subversivo pode ser tão bem absorvido pela cultura pop e de massa atingindo um nível de produção industrial e vendável tão grande. Em praticamente qualquer lugar que haja um descontentamento com o governo, veremos pessoas utilizando a máscara de Guy Fawkes, imortalizada em V de Vingança. O Curioso é que antes do filme o quadrinho parecia ter ficado um tanto quanto no limbo. Havia sido lançado no Brasil com poucas tiragens e edições, sendo uma obra rara até pouco tempo atrás, quando esta edição que comprei invadiu as bancas e livrarias. Ótima estratégia de marketing.
Na entrevista dada anos posteriores ao lançamento, o roteirista Alan Moore fala que sua visão ainda era muito inocente e até mesmo otimista, pouco clara em alguns momentos. Nada disto tira o mérito do lindo roteiro escrito por ele, mas boas histórias também merecem alguma discussão.
O contexto de produção desta obra é os anos Tachter, marcados por um forte avanço do conservadorismo e da direita no Reino Unido, que apesar do seu crescimento econômico, não revelou uma melhora significativa para a população. Moore via no governo de Tachter uma ameaça possível, que por sinal pode atacar qualquer um a qualquer momento: o fascismo. Como a Guerra Fria ainda não havia acabado, fazia sentido em ver no governo o grande vilão, afinal é entre os Estados que vemos as ações mais complicadas sendo articuladas neste período, seja a guerra das Malvinas, proibição de usar calças jeans ou a espionagem e sabotagem, tanto a direita quanto a esquerda cometeram atos falhos por meio do Estado.
Em nome de uma pretensa ordem, Tachter passou por cima de várias conquistas que o povo inglês demorou anos de luta para conseguir. Como toda boa ficção científica, podemos perceber um grande exagero de situações presentes sendo jogadas para o futuro. Afinal o que nos impede de ver na violenta supressão a uma greve de mineiros (bem ilustrado em Billy Eliot) levar a supressão de outras liberdades, como a de ler e ouvir o que quiser, até o que farás com teu corpo, quem você quer beijar. Apesar do exagero, não podemos descartar a possibilidade de cairmos em fascismos. Temos uma direita ilustrada ali que não se preocupa em passar por cima de tudo para garantir o controle e a condução dos eventos. Ele sabia que sua ameaça real não era a KGB, mas sim Tachter e seu grupo. Afinal, Alan Moore morava na Inglaterra dos anos 1980, e não na URSS.
O grande acerto de Alan Moore é que as pessoas tem seu caráter particular, cada uma delas. Ou seja, não se pode prever com exatidão o que ocorrerá dentro de um período muito largo de tempo. E mesmo em curto espaço de tempo, as previsões nunca são algo certeiro, definitivo. Dai que revoltas populares são algo possível de ocorrer, e por mais que os jornalistas despreparados da impressa que temos dominando o Brasil afirmando, estas revoltas não são cíclicas1, elas ocorrem por motivos reais, o porém é a incerteza de prever até onde a população suportaria a pressão. Quanto tempo uma cidade aguenta sem mobilidade, sabendo que isso é possível e há dinheiro em caixa para isso?
Porém Alan Moore já nos alertou de sua visão demasiado “inocente” da época. Os acontecimentos recentes do Brasil nos mostram isso também, apesar dos protestos seguirem, a população se acalmou, afinal uma consciência política não desperta do nada, ela demora algum tempo e demanda algum esforço, tal qual qualquer outra atividade. Por isso se mostra muito otimista acreditar que num belo dia a população consiga se levantar contra o governo e após isso construir um novo e melhor governo. O que tento explicar aqui não é da impossibilidade disso, mas sim de que isto necessita um esforço enorme, e os tropeços haverão.
Por fim, V de Vingança acaba sendo tão bem aceito pelo fato simples de “vender” a Revolução. A ideia revolucionária é algo que está muito forte na nossa mentalidade, quase que independente da idade ou estrato social. Revolução e liberdade acabaram se tornando termos muito fortes, por mais complicados que estes termos sejam de se explicar.

1Só para constar, afirmar que algo na história é cíclico, tal qual alguns jornalistas defendem na impressa, são demonstra despreparo prático e intelectual, e claro, desconhecimento histórico. Temos uma desculpa furada para justificar alguma coisa mais macabra que os protestos, como uma ação policial (violenta).

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Hakim Bey - Milênio, Por e contra a interpretação, Religião e revolução, Notas sobre o nacionalismo


Faz algum tempo a esquerda de maneira geral passa por um forte questionamento, tanto interno quanto externo. Ocorre que com o fim da URSS acabou ficando no ar uma vitória do capitalismo liberal, de fim de século inesperado. Pareceu então que o capitalismo havia vencido e era o único caminho possível. Não por acaso, os anos 1990 são acompanhados de uma série de privatizações, no caso da América Latina se buscou seguir a cartilha da escola de Chicago que teve uma de suas primeiras experiências durante o governo ditatorial de Augusto Pinochet. Muitos defensores do regime ditatorial de Pinochet e do neoliberalismo vão apontar para o fato de que o PIB chileno aumentou durante o governo militar, mas não podemos esquecer que não houve uma distribuição de renda, ocorrendo justamente o contrário, havendo um aumento das diferenças sociais, isso sem contar no saldo de mortos por um regime assassino.
É durante os anos 90 que vamos perceber um avanço maciço deste capitalismo neoliberal e de um novo termo: globalização. Fazendo parecer com que globalizado e moderno soassem iguais, um país que não estava no eixo da globalização estaria fadado ao fracasso, dai que ocorreu um esforço gigante para que este processo ocorresse, e praticamente não nos demos conta na época de que esta globalização não passava de um nome bonito para um capitalismo sem fronteiras e muito mais agressivo e atuante. Com o fim da URSS o Estado deixou de ser o grande inimigo, e o capital passou a controlar o Estado – ou melhor, oficializou esta mudança. Vale recordar que temos inúmeras empresas e conglomerados que ultrapassam em muito as riquezas de vários países.
Havendo uma mudança do quadro as estratégias precisam mudar, o foco deve ser outro. Esta talvez seja a maior contribuição de Hakim Bey, nos alertar para algo tão óbvio, novas posturas e estratégias para novos tempos. Apesar da propaganda colocar a globalização (e consequentemente o capitalismo) como um produto aceito e desejado por todos, temos várias expressões não ligadas a visão tradicional que existe da esquerda, que de uma forma ou de outra rejeitam esta dominação global. O exemplo mais claro disso é o islamismo e seus grupos ligados a essa religião. Apesar de não ficar claro no discurso, podemos perceber que há na adoção prática dos islamismo uma forma de rejeitar este novo mundo globalizado (e ocidentalizado) que pretende estar em todos os lugares. Da mesma forma setores da Igreja católica percebem que vivemos num mundo cada vez menos místico a medida que o capitalismo se renova e ganha cada vez mais espaço, sobrando menos tempo e atenção para um lado espiritual, diminuindo cada vez mais o número de fiéis nas igrejas. Os índios brasileiros estão há anos buscando sobreviver com sua estrutura social distinta e ausente de Estado. Apesar de não termos algo que podemos chamar de “consciência revolucionária” ou classificarmos algum destes exemplos do que seria a esquerda, vários grupos acabam resistindo, direta ou indiretamente, consciente ou inconscientemente, a esta globalização. Notem que não se restringe aos black blocs.
Devemos claro, tomar cuidado para não cairmos num fundamentalismo islâmico ou algum desejo conservador nostálgico, o que temos de maneira bem clara é o quanto o fim da União Soviética acabou com o monopólio da oposição ao capitalismo, e devemos aproveitar isto. Neste sentido há cada vez mais novas formas de luta. Apesar de nos últimos anos o capitalismo procurar dar conta de várias carências materiais, a exemplo do que ocorreu no Brasil nestes últimos anos, ainda temos as pessoas morando em favelas, faltando água potável, com hábitos cotidianos péssimos somados a uma terrível alimentação (sódio/açúcar em altas quantidades), segregação social (vide os “rolezinhos”), diferenças e problemas que estão muito mais ligados a uma questão cultural do que material, mas ainda assim provocados por um modelo capitalista de sociedade. Apesar do capitalismo ter garantido comida para muita gente, a qualidade de vida não está melhor, muitas vezes até piorou. Precisamos analisar o capitalismo hoje de maneira atual, e por mais genial que Karl Marx possa ser, a muitas vezes ele não servirá.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Curso de Linguística Geral - Ferdinand de Saussure


Algo muito particular a condição humana é a linguagem. Não somos os únicos detentores a possuí-la, podemos observar a linguagem entre outros animais, porém o peso da linguagem para o Homem é outro. Mais do que isso, também utilizamos a linguagem para transmitir mais coisas do que aquelas que os olhos podem ver. Nossa capacidade linguística é diferente devido a nossa abstração. É regra geral ao ser humano sua abstração e linguagem. A abstração nos possibilita o pensamento, a linguagem nos possibilita trabalhar sobre este pensamento. Ao se estudar o homem, a linguística deve estar ali, é uma parte de seu meio.
É cada vez mais comum nos estudos humanos, ser levado em consideração a linguística, seja na sociologia, filosofia ou história. Estas ciências enquanto ocupadas do homem, se ocupam também de suas relações, e é por meio das palavras que elas ocorrem. Os significados estão nas palavras, mudando seu sentido em diferentes culturas. É necessário medi-las quando se conversa com alguém.
Ferdinand de Saussure parece ter sido um linguista muito particular de seu tempo. O curioso entretanto é que este livro não foi escrito por ele, o que temos são anotações de suas aulas organizadas e editadas, procurando transmitir seus ensinamentos para a posteridade. Segundo tudo indica, ele se mostrava um sujeito inovador dentro do campo linguístico de sua época. Ao longo do livro podemos perceber que ele consegue dialogar muito bem com um lado mais tradicional da linguística, onde se está mais ligado a gramática, quanto a um campo mais aberto, que trata das relações do Homem com a linguagem. Esta última parte é para os não linguistas a parte mais vital.
Quando se toma um contato primário com os estudos da linguagem, é comum alguma confusão, pois ela é algo muito escorregadio, após ditas as palavras se vão e mesmo se repetidas, cada vez que se escuta, atos como a entonação, as gesticulações ou até mesmo a ocasião podem trazer novos significados. Talvez por isso seja tão complicado para um acadêmico lidar com a linguística nos seus primeiros semestres, por mais interessante que pareça. Neste sentido uma obra que aborde o caráter geral seja muito válida.
Há vários cursos gerais de linguística, de variados autores, porém a escolha por Saussure se dá pelo estruturalismo. Esta coisa chamada estruturalismo parece iniciar no campo linguístico e Saussure é apontado como o patrono (junto com Marx), entretanto não se pode afirmar que Saussure seja um estruturalista. Ao se estudar uma língua estrangeira se percebe que a estrutura da frase muda. Quanto mais diferente a língua, maiores diferenças na estrutura. Partindo dai, podemos entender que cada sociedade, tal qual suas diferenças linguísticas, muda em relação a outra.
O que chama atenção em Saussure no seu curso é a sua atenção em relação a linguagem e o Homem. Não é dado ao ser humano algum mérito especial pela linguagem, como ele coloca “não está provado que a função da linguagem, tal como ela se manifesta quando falamos, seja inteiramente natural, isto é: que nosso aparelho vocal tenha sido feito para falar, assim como nossas pernas para andar”1. A linguagem é portadora de ideias, que se transformam junto com a linguagem. Esta linguagem é constituída por mais do que as palavras. A imagem também é constituidora de pensamento, Benjamin já nos alertou sobre isso. A linguagem se confunde com o pensamento.
 
1SAUSSURE, Ferdinand. Curso de linguística geral. São Paulo: editora Cultrix ltda, 1975, p. 17.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

O Pagamento - Philip K. Dick


As histórias de Philip K. Dick trazem mais do que simples aventuras, há questões sendo trabalhadas ali. Parece que hoje em dia o gênero se resumiu a receita de filmes como Star Wars ou Star Trek. Não desenvolvendo questões mais profundas do que a luta do Bem contra o Mal no meio de “muita aventura”. Diverte, é legal, mas pouco traz de novo. Stanislaw Lem, autor de Solaris, já percebia isto durante os anos 1970 e por isso acabou largando ao longo do tempo a ficção científica e se decepcionando com o que ela poderia se tornar. Talvez pelo fato das histórias pouco comuns de Dick, ele não parece ser um autor muito lido entre os brasileiros, apenas pessoas que querem ir além dos clássicos 1984, Fahrenheit 486 e Admirável Mundo Novo.
Há também o fato de que Philip K. Dick é o autor com o maior número de roteiros adaptados para o cinema. Os filmes adaptados a partir de histórias do Dick são variados, como está na chamada da capa deste livro, temos “O Pagamento” e “Minority Report: a nova lei”, porém clássicos como Blade Runner e filmes com atores tão ilustres quanto Arnold Schwarznegger fazem parte deste confuso mosaico. O que rola sempre, independente da qualidade da adaptação – ou atuação – é que suas histórias são mais do que uma aventura. Philip Dick cursou filosofia, e mesmo sem ter terminado seu curso, isto parece significar algo.
O curioso deste livro encontrado num sebo é a quantidade de contos, que acredito eram até então em sua maioria inéditos no Brasil, estes contos possuem abordagem variada. Infelizmente não houve um cuidado em indicar o ano da publicação desses contos, o que pode ser esperar muito de um livro com vários erros de grafia e digitação – supostamente aproveitaram a onda de algum filme para lançar algo que estava na gaveta e possivelmente não daria nenhum lucro sem a existência do cinema.
Um elemento notável é que a ficção científica não está preocupada com o futuro, mas sim com o seu presente. Em 1984 a preocupação é com o totalitarismo, em Fahrenheit é o abandono do hábito de leitura em detrimento da popularização da televisão e em Admirável Mundo Novo percebemos uma preocupação com uma rápida modernização da sociedade, destruidora de coisas também tão bonitas quanto o moderno. Em muitos contos contidos aqui está no ar uma eminente guerra que pode destruir todo o planeta. Ora, Dick começou a publicar durante a Guerra Fria e tanto URSS quanto EUA tinham (tem) poder de fogo para destruir o planeta Terra mais de uma vez. Esta constante ameaça de guerra está nos seus contos, uma visão pessimista do futuro a partir do presente que se vive. A ciência acaba sendo o campo de descoberta e meio termo entre a destruição e a esperança, afinal é devido a uma máquina do tempo que se pode roubar os planos secretos de algum cientista que desenvolverá alguma arma muito poderosa no futuro.
Entretanto resumir seus contos a esta tensão existente na época, não impediu Philip Dick de escrever sobre outros temas. Uma colocação que já está mais evidente em seu romance Os três estigmas de Palmer Eldricht, é sobre a tal da vida mundana. Provavelmente após a declaração de Stanislaw Lem de que Dick era na época o único escritor estadunidense ativo louvável de ficção científica, o americano escutou a crítica do polonês de que quando muito a ficção científica abordava no máximo a problemática da Guerra Fria. Por isso percebesse que o americano foca em sua realidade e a guerra destruidora começa a perder espaço para a dominação de empresas e o tédio da vida cotidiana – tudo isto com a desolação do planeta, seja por uma guerra ou seja por alguma catástrofe ambiental ao fundo, não podemos esquecer. A vida se torna um produto, ou uma forma de obter lucro. Assim que temos o momento chamado de pós-guerra, a população do mundo inteiro começará a ter um acesso cada vez maior a bens de consumo antes impensáveis como: automóvel, televisão, aspirador, liquidificador, geladeira, ar condicionado, micro-ondas, shampoo, preservativos, comida industrializada (congelada). A partir de todo este acesso, ocorreu uma adoração a certos bens ou marcas, os produtos vão ganhar personalidade. É partindo dai que várias vezes os personagens de Dick fazem de tudo para conseguir algum produto, seja ele uma boneca, tabuleiro ou droga.
O conto mais forte talvez seja o do sujeito aficionado por seu trenzinho no porão, o que ele deseja é uma fuga. Ao mesmo tempo sua mulher quer alcançar o modo de vida ilustrado em propagandas ostentar felicidade mais do que usufruir dela. Ele odeia seu emprego, a cidade e sua vida. Em sua maquete por onde passeia o trem ele pode reconstruir da forma que mais lhe apetece, podendo ter alguma escolha para si que seja maior do que trabalhar e ter seus valorosos finais de semana passeando em algum carro até algum resort caro. Ou talvez só queira voltar para sua infância, quando as pessoas pouco se importavam com ele. De qualquer forma, o que temos é um questionamento da realidade que se vive mais do que da realidade possível de uma guerra eminente entre dois superblocos. Nestes últimos contos do livro este tipo de roteiro se torna mais recorrente, e podemos perceber uma obra mais madura de Philip K. Dick, um dos maiores escritores de ficção científica, sem sombra de dúvida.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Persépolis - Marjane Satrapi


O primeiro preconceito que devemos perder ao estudar a História do Oriente é descermos de nosso degrau eurocentrista. Querendo ou não, pouco sabemos a respeito “do lado de lá” do meridiano de Greenwich. A primeira coisa é que o Irã não é árabe e sim persa. São persas, que tal qual os turcos e os negros subsaarianos, foram “arabizados”, recebendo uma forte parcela de influência árabe na sua cultura, nesse processo de mistura e mudança cultural a religião veio junto: o islamismo.
Ocorre que a história cerceia as sociedades, e por isso não podemos ignorá-la, sempre estará marcando presença, a introdução da obra com tópicos históricos importantes sobre a história da Pérsia/Irã deixam isso claro. Nisto se olharmos a história do Irã podemos ficar chocados, especialmente se levarmos em conta o modo de vida da família de Satrapi. O Irã parecia ser um país relativamente liberalizado dentro do Oriente Médio, porém conseguiu se revelar uma grande decepção após sua revolução islâmica – apesar de talvez ser a revolução menos ligada ao ideal de liberdade, igualdade e fraternidade, o que faz dela algo original. O que nos choca é que temos um ponto de vista positivista e acreditamos que as coisas sempre progridem e melhoram conforme o tempo evolui. O presente virar passado não garante melhora alguma. O Irã, o Afeganistão e as ditaduras que assolaram a América Latina são uma mostra de como este nosso senso de que a história sempre “evolui” não passa de uma teoria furada. A visão de uma linha reta ascendente para o progresso talvez não fazia sentido nem para Leopold von Ranke. Mas independente da historiografia existente, esta ideia de que se progride na marcha da história está muito bem marcada em nosso pensamento cotidiano.
E aqui fica meu espanto, se ocorreu isto no Irã, um país do chamado terceiro mundo, o que impede de que tal movimento ocorra em outros lugares como o Brasil?
Podemos nos seduzir pela interpretação comum de que os problemas ilustrados em Persépolis ocorrem devido a religiosidade islâmica. A autora do livro é genial ao deixar claro que não possui o menor embaraço em ser iraniana, sua fuga foi pelo simples fato das coisas não estarem bem, uma guerra nos convence fácil disso. Até porque no começo da obra fica clara a crença da família Satrapi no islamismo, apesar de seu caráter secular. Apesar de clichê e parecer um discurso do professor Xavier dos X-men, a convivência pacífica é ainda uma solução muito tentadora, e no caso de Persépolis o que se pede não é o fim do islamismo ou da “opressora cultura persa”, mas sim de que não se busque impor nada as pessoas, como no caso das mulheres usarem o véu obrigatoriamente enquanto andam na rua, correndo o risco de serem presas. Por mais significados e justificativas contidos no uso do véu, algumas vezes pode fazer muito calor e ele ser incômodo, mais nada.
Ocorre que podemos entender que muitos problemas no Irã foram causados pelo imperialismo, a constante disputa entre países por recursos e influência, isto fez com que muita gente metesse o bedelho onde não era chamado e atrapalhando (muito!) as coisas. O grande mérito afinal, da revolução iraniana de 1979 é procurar fugir desta influência externa, isto contudo, não apaga nenhuma mancha de sangue e nem dá mérito eterno a ninguém. E por isso fiquei tão encantado com Persépolis, já que ali se trata do Irã contemporâneo sem retratar um país de bárbaros incivilizados e incultos, mesmo sendo a autora de um nível social extremamente elitizado.