segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Urubu - Douglas R. Grubel


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Certa vez li em algum lugar que o livro deve ser um objeto de transformação. O livro deve conversar com você, deve servir para você como um óculos, você usa para mudar sua visão sobre algo. Ou evitando o caráter de correção que o óculos pode ter, a leitura pode trazer efeitos semelhantes a consumir alguma droga, ele pode mudar sua forma de ver e perceber as coisas. Não devemos ter medo do livro, nem da mudança. Constantemente estamos trilhando algum caminho, às vezes mais rápido outras vezes mais devagar. Muitas vezes a leitura pode te ajudar, mas nem sempre.
O que é muito bom observar é que de alguma forma o livro aqui não ganha nenhum bastião especial. Ele foi encontrado no lixo, desprezado como tantas outras coisas. Mas é a partir deste acontecimento que outros se tornam possíveis. E para isto talvez não houvesse maneira melhor de dizer isso do que da forma que foi dito, no caso publicando esta história de forma independente, quase anônima e a um custo baixo. Além do mais a forma com que irá circular, literalmente passando de mão em mão, talvez seja uma das mais bonitas atualmente.
Pode parecer clichê falar sobre isso, mas cada vez mais parece importante não tratar as pessoas como burras. Acreditar no seu conhecimento e capacidade de raciocínio, reconhecer isso no homem popular, algo que parece muito bem ignorado pela tradicional classe-média brasileira. O grande personagem da história é um sujeito solitário, que vive num lixão, que pinça as coisas feito um urubu que pinça a carniça. A metáfora do urubu é mais do que uma simples referência ao lixão, o personagem faz feito esta ave: pinça o que lhe interessa e escolhe o que irá ingerir. Por mais que existam limitações, ele estará escolhendo o que ingerir. Gosto da metáfora das tatuagens, onde diferente do ferro quente que marca o gado, você está escolhendo quais serão suas marcas no corpo. Em alguma medida o livro possibilita isto, especialmente a literatura, ou o livro que lemos deitado na cama, já que este não possui obrigatoriedade alguma.
Não só é uma história como é também uma profanação, e este ato é cada vez mais necessário hoje em dia, até porque parece que apenas as crianças ainda conseguem faze-lo de forma autêntica. É brincando (Spielen, Play, Jour) que se pode construir coisas novas. E profanando, tirando as coisas de seu lugar e função no caso, que se possibilita novas visões. Profanar o livro talvez ajude a relacionar-se com ele. E a relação se mostra como uma das coisas mais importantes para o ser humano, já que o livro pouco importa se eu não me relaciono com ele, e esta relação acaba demonstrando muito mais do que simples entretenimento capitalista, onde parece haver uma simples busca por prazeres secretos e passiveis de consumo.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

As Revoluções Africanas - Paulo Fagundes Visentini


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Dizem que a expressão terceiro mundo não tem mais cabimento. Em larga medida faz sentido esta observação, já que terceiro mundo está muito ligado a uma série de observações descabíveis para muitas coisas. Porém vejo ai um agrupamento identitário, terceiro mundo acaba aglutinando boa parte deste mundo “esquecido”, que parece ficar nas margens do Império Romano. É comum encontrar pessoas que saibam as capitais de inúmeros países europeus, entretanto encontrar alguém que entenda África como um continente e não como um país, é algo raro. Não bastasse, constantemente são feitas comparações entre o lugar em que vivemos e alguma experiência europeia. Eu por exemplo, faço isto repetidamente ao discutir mobilidade urbana e o uso de bicicletas. Confesso que nem sempre é proposital, mas quando o é sei que efeito estou produzindo ao citar o uso de bicicletas na Alemanha. Poderia citar Cuba, que segundo soube por boatos, está investindo nos últimos anos nesta mesma questão, mas sei que citar Alemanha acaba soando bem mais eficiente e abrangente.
Uma das coisas que podemos observar dai é a falta de crédito dado a capacidade destes países periféricos, que estão a margem em alguma medida. Parece que nem sempre se busca uma autonomia, um caminho próprio e mais adaptado a nossas necessidades. Um exemplo prático foi quando uma amiga minha conversava com uma intercambista alemã, ambas estudantes de Arquitetura e Urbanismo. A garota alemã perguntava duvidosa e quase revoltada porque aqui nós evitávamos construir na beira do rio, já que ele é bonito e aproveitaria melhor o espaço, além do que é assim que eles fazem na Alemanha. Porém, cabe lembrar, que na Alemanha eles não tem chuvas como temos aqui, não tem a natureza que temos aqui, nem o solo deve ser semelhante (aqui no Vale do Itajaí a terra é bem vermelha). O elemento claro é que não estamos acostumados, e muito menos somos educados para lidar com estas particularidades e necessidades de cada caso e lugar.
Em larga escala este desejo estará presente nas três empreitadas trabalhadas ao longo deste livro. Poderiam tentar outros caminhos, mas, de alguma forma, escolheram tentar o socialismo. Muitas vezes esta tendência acabava ocorrendo por um motivo muitas vezes ignorado ao citar tais casos. Por exemplo, Hailé Selassié tinha seu regime apoiado pelos EUA. Movimentos sempre precisam de apoio externo, e no caso etíope não viria da casa branca, como a bipolaridade do período acabava te obrigando a escolher um lado, alinhar-se a URSS aparece como a opção mais sensata. Até porque já havia uma simpatia pelo socialismo. É ignorado que esta escolha pelo socialismo representa uma possibilidade de autonomia, dificilmente anunciada no capitalismo americano apoiador do Imperador (da mesma forma os EUA proporcionavam uma certa autonomia para Hailé Selassié, cabe observar).
Se entrarmos na discussão de quão socialista ou não foram estes episódios, creio que será uma longa conversa que não quero fazer agora. Caio no pecado do cientista e busco focos possíveis ao longo desta discussão. Vale a pena olhar como esta busca por autonomia é algo penoso aos países alocados de alguma forma dentro do jargão 3º mundo. Mas ao mesmo tempo podemos perceber ai uma capacidade inovadora incrível, que indica ser dificílima no engessado 1º mundo. E para isto acredito que saber de seu lugar facilita o movimentar-se.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

O tambor (filme)

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          Os tempos mais antigos parecem mais plurais. O Estado sempre se mostra mais “fraco” no passado, e nisto vale lembrar que a essência do Estado é autoritária. Talvez por isso tempos anteriores acabam dando brechas de sua pluralidade. Isso é o que me interessa no enclave formado pela cidade de Danzig/Gdańsk (local onde se passa o filme), esta possível pluralidade. Apesar da maioria alemã, o filme acaba ilustrando a relação constante entre cassúbios, poloneses, judeus e alemães. Cada um com seus costumes particulares, e especialmente sua língua. É na língua e na linguagem que podemos clivar diferenças, e talvez a diferença e a pluralidade sejam mais necessários hoje do que nunca, já que a globalização parece diminuí-las e com isso aguçar nosso desejo por ela.
          O grande elemento acaba sendo a decepção, ou negação de Oskar para com a sociedade ao seu redor, ou "mundo adulto", que simboliza de alguma forma o futuro que se anuncia. Lhe desagrada e assim sendo ele decide parar de crescer, negando assim a desagradável possibilidade que anunciada por este crescimento. Não por acaso que o sujeito que deseja marcar na soleira da porta o progresso da altura de Oskar, é o nazista mais fervoroso da miríade de personagens. Ele que está ansioso pelo crescimento de Oskar, é quem se volta ao nazismo de tal forma que acabará esquecendo de sua esposa, deixando de alguma forma o amor de lado. Totalizando sua vida em um único foco, como parece ter acontecido com a população de língua alemã durante este famoso episódio - os nazis tinham 90% ou mais de aprovação popular.
          Apesar de estarmos acostumados a assim enxergar o assunto, o nazismo não surgirá do nada, a Alemanha se mostrou durante muito tempo como uma nação altamente militarizada, assim como com uma ciência de ponta. Da mesma forma o ódio aos judeus, o orgulho alemão, campos de concentração, militarismo e patriotismo surgem antes de Adolfinho e sua trupe. Ao negar a vida adulta, Oskar negava também os adultos ao seu redor, e eles estavam encharcados nestes elementos. E é este desejo por tantas coisas que o nazismo se pretendia dar conta (a promessa de um mundo mais “belo”, por exemplo1), que acaba com todo o pluralismo possível no princípio do filme, e que depois vai se deteriorando junto com a própria cidade de Danzig. É o desejo por tornar Danzig alemã, que acabará destruindo ela, ou ao menos o que ela foi. A cidade era aquela mescla toda, e lidar com o que está seria mais produtivo do que simplesmente destruir tudo2.
          Uma rápida análise histórica pode ser válida. Teremos o autor da obra indo até o passado para pensar reflexões de seu tempo. O tema da segunda guerra não era estudado nas escolas alemãs até a segunda metade da década de 1970, ficando assim o assunto muito a margem, o que é de se espantar ao pensarmos o caso alemão e a importância do assunto. Entender o nazismo como algo mais do que maluquice ou babaquice das pessoas também seria um bom ponto, já que boa parte dos personagens acabarão tendo algum envolvimento com esta política. O nazismo foi construído historicamente e uma série de fatores históricos o possibilitaram neste período. Também é importante lembrar aonde o nazismo conseguiu chegar (morte, destruição, fome, ódio...). Uma saudade por tempos passados também aparece de alguma forma no desejo para que Gdańsk volte a ser parte do Reich (o que efetivamente ocorreu até que a guerra acabasse). Talvez Günter Grass desejasse advertir para alguns fantasmas que rondam o tempo passado, tão recente no período em que escrevera a obra. E talvez este "mundo adulto", negado ao princípio do filme, acabe sendo a causa de tanta coisa complicada que aconteceu. E quem sabe por isso, apenas ao fim da guerra, Oskar tenha finalmente decidido crescer, pois ai então o "mundo adulto" (o futuro dele, mas o presente anunciado) pudesse se mostrar mais promissor, apesar de todas cicatrizes existentes no corpo.

1 Para elucidar melhor a questão, seria interessante assistir ao filme: Arquitetura da destruição.
2A cidade de Danzig ganhará o status de autônoma depois da 1ª guerra ficando no meio do “corredor polonês”. Mais tarde ao fim da 2ª guerra, novas penalidades territoriais colocarão Danzig definitivamente em território polonês. Junto com essa penalidade houve um planejamento para evacuação da população de língua alemã desta região. Atualmente a Polônia tem uma das comunidades minoritárias de língua alemã mais bem organizadas do planeta, existindo ainda cidades bilíngues.

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Os Amigos - Kazumi Yumoto

          A literatura japonesa é para dentro. Talvez a metáfora cabível seja a do chá, já que tais livros pretendem entrar dentro de você da mesma forma que o chá que se bebe. O chá, para quem não sabe, é um elemento importante dentro da cultura nipônica, e segue sendo ao longo dos anos um grande bastião desta cultura. Assim sendo comparar tal literatura com o chá, parece fazer sentido. O chá queima quando desce, dá para sentir que ele está entrando e reagindo com seu corpo. Muitas vezes esquecemos que alimentar-se pode ser uma experiência estética.
          Porém, nutrir-se apenas de si parece levar a uma desnutrição. Neste sentido pensar o que te rodeia, mesmo sabendo que não se dá conta deste todo, revela-se tarefa constante e necessária. O livro consegue dar pequenas pontadas na sociedade (japonesa). Gosto de observar que construímos uma sociedade cada vez mais escolarizada – países como Alemanha e Japão são o grande exemplo – porém percebemos que isto não resolve todos os problemas aos quais a pedagogia se propõe (e é cobrada) à resolver. É curioso observar como o aprendizado e a vivência se fazem muito mais intensos nas aventuras do trio de amigos, do que nos momentos em que estão na escola. A escola acaba aparecendo como lugar de cobrança e chacota. Fora dela o leque de possibilidades dos garotos se amplia, e o olhar atento com as coisas ao redor dão o norte para pequenos questionamentos. Fragmentos para uma sociedade fragmentada. Nos cacos também é possível observar.
          Curioso como ao desejarem conhecer mais sobre a morte, a tríade consegue “exercer” melhor sua vida. Tal curiosidade, de alguma forma os conduz a novas experiências, e sensações podem ser ativadas a partir delas. Talvez assim possamos repensar a função da escola, já que esta fica apenas em pano de fundo, enquanto o aprendizado ocorre por meio de coisas triviais. E diferentemente de uma sala da aula tradicional, não há necessidade de instigar o sujeito, pois fora da sala, ele é constantemente instigado por sua realidade.
          O saldo advindo de uma sociedade extremamente previsível e regrada como parece ser a japonesa se reflete nos pais do trio de amigos. Além de ausentes, eles parecem estar fortemente abalados e buscam sua fuga em pontos possíveis, como o álcool ou depositar seus desejos e esperanças na criança (para que ele não seja dono de uma loja de sushis, por exemplo). Para agravar mais ainda o quadro, é todo este regramento que acaba por separar amigos que se relacionam tão bem, apesar das largas diferenças. É no interesse comum que eles acabam se encontrando. Apesar de tratar de uma sociedade tão diferente e ter a característica comum da literatura japonesa de voltar-se para dentro, podemos pegar algo que nos interesse, e quiça isto seja o que mais importa.

terça-feira, 30 de outubro de 2012

TAZ, Zona Autônoma Temporária - Hakim Bey

          As coisas acabam. O grande trauma de muitas questões do nosso cotidiano é o fato de não entendermos que nada é eterno. Dai nossa decepção quando algo, onde tanto apostamos acabou não vingando. Da mesma maneira comumente esperamos que tudo melhore, quando talvez fosse mais saudável compreender que as coisas mudam, ganham outra forma, e tiveram a intensidade possível em seu momento.

          Neste sentido olhamos para os movimentos atuais com muita dúvida. Sua indefinição nos confunde, mas ao mesmo tempo diz muito mais do que queremos ouvir. Triste é o coro quase geral por um pedido de regresso ao estado de bem-estar social, que parece ser o grande mote dos protestos nos países em crise dentro da União Europeia. Concordo que é menos assustador que o burburinho de alguns europeus pelo regresso de regimes totalitários (em especial: Espanha, Portugal e Grécia, países com largo histórico de ditaduras). De qualquer forma em ambos podemos observar uma saudade do passado, algo sempre muito perigoso, ou desejo por uma estagnação (no caso chegar em algum ponto e ali ficar eternamente) que por sinal é pautada em tempos passados – seja o bem estar social europeu ou as ditaduras. Esta volta ao passado revela, dentre tantas coisas, este desejo por estagnação, pelo eterno, é uma lamentação pelo fato de algo terminar.

          Esta dificuldade por compreender que as coisas acabam se mostra mais perene no caso da chamada primavera árabe. Ao derrubarem os regimes ditatoriais (que durante anos não foram chamados assim pela mídia internacional) fora dito que uma avalanche por democracia varia estes povos. Pretensão tamanha a “desses ocidentais” que além de durante anos terem sustentado e apoiado estes regimes autoritários, agora dizem, antes mesmo de perguntar, que o desejo desses povos é por um regime igual ao nosso – e fica a pergunta, o que é afinal democracia? Não queremos aceitar que deste emaranhado chamado terceiro mundo possa vir a evidência mais autêntica dos últimos tempos, desprezo e descrença por fundamentos largamente construídos nos últimos 300 ou sei lá quantos anos. E há uma dificuldade em compreender isto, principalmente por não aceitarmos a possibilidade do fim.

          Talvez deixar de desejar tanto o eterno seja a melhor atitude, mas como apagar marcas inscritas de forma tão profunda em nossa pele? Talvez este seja o grande desafio atual. Também sabemos que não há como apagar estas marcas sem deixar outras, e concordo que pouco sabemos (ou aceitamos) que marcas poderiam ser estas. Nosso corpo é marcado, traumatizado, e muitas vezes acabamos criando alguma afeição pela cicatriz.

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Os Anos de Chumbo - Margarethe von Trotta


          Em definitivo utilizar-se do militarismo para combater o fascismo é no mínimo uma ideia equivocada ou complexa. Soa nada destoante de pretensos partidos políticos e figuras bem intencionadas que pretendem mudar a sociedade utilizando-se do atravancado sistema político formal que temos hoje (votar a cada dois anos). Mas de alguma forma olhar para estas experiências pode revelar algo proveitoso.
          Por alguma razão a década de 1970 foi povoada por grupos guerrilheiros, da mesma forma que por forte repressão e autoritarismo, por isso o termo “tempos de chumbo” - por sinal título do filme – é comumente utilizado. Neste sentido a obra é muito feliz ao escolher duas irmãs experienciando de forma distinta as mesmas angústias. Não só pelo jogo duplo, já que temos duas pessoas com desejos semelhantes seguindo caminhos diferentes, mas também pelo fato delas serem mulheres. Discussões a parte, podemos afirmar que nossa sociedade é muito mais machista do que nos damos conta, e apesar deste machismo também oprimir o homem, para a mulher fica reservado um lugar menos glorioso.
         Não só é neste período que o progresso técnico vai marcar a história das mulheres, principalmente pelas pílulas, como também mulheres vão tomar a frente em vários movimentos. E o caso alemão não é diferente, dai que não por acaso a maior parte dos membros do grupo Baader-Meinhof eram mulheres. Das três grandes figuras, duas eram mulheres (Gudrun Ensslin, Ulrike Meinhof). Os movimentos feministas ganham muito gás neste período, ecoando a revolução sexual que ocorria.
          Algo que me fascina na figura do terrorista, especialmente sobre este da década de 1970 que sabemos alguma coisa, diferente do “sem rosto” islâmico, é o risco e mudança de identidade que ele assume. Constantemente vive-se no limite, podendo ser preso ou morto a qualquer instante. Uma prática comum era mudar seu nome, mudando assim também sua identidade1. Algo que, ao menos de longe, parece ser muito intenso e arriscado. Desfazer vínculos nunca é tarefa fácil. E arriscar-se demonstra ser algo cada vez mais complicado nos dias de hoje.
           Outro elemento é toda a capacidade de elaborar redes e formas de contornar todas as limitações colocadas pelo aparato policial. Regras como evitar soltar alguma informação durante as primeiras 24 horas de tortura (algo que os interrogadores sabiam, e assim sendo faziam dessas 24 horas as mais duras), sempre circular evitando, por exemplo, dormir duas vezes no mesmo lugar, criar campos de treino clandestinos, códigos secretos, imprimir e ler textos proibidos, entre tantas outras coisas, demonstram uma capacidade inventiva muito forte. Assim como de contorno aos obstáculos colocados.
          Um dado interessante é que no geral as pessoas que acabavam organizando-se de alguma forma contra estes regimes autoritários, contemplavam aquela larga faixa chamada de classe média. E sobre isso olhar por uma ótica um pouco diferente da colocada no episódio da invasão da reitoria da USP, onde tal estrato foi representado como adolescentes mimados, prefiro perguntar o que levou sujeitos com um possível futuro tão confortável e estático no horizonte, saírem de sua “zona de conforto”? Nisto o filme acaba retratando os dois lados, a atriz que conduz a história acaba fazendo a vez da garota que terminou sua faculdade e mantem uma relação saudável com seu marido profissional liberal, ambos possuem certo capital cultural e econômico. Enquanto sua irmã é a terrorista, constantemente no limite, sendo algumas vezes até mesmo arrogante e controversa. Porém ambas são tocadas pelo incomodo e descontentamento. O que ocorre é que acabam seguindo caminhos diferentes, mas ambos acabam se mostrando duros e provocantes.
          O saldo que podemos ter disto tudo é pensar o quão necessário é falar e discutir sobre este período, até porque aqui também houve guerrilha, autoritarismo e uma confusão danada. Assim como também pensar que aparato é este que dá cabo das pessoas? Seja simulando suicídios de presos, seja pela falta dessa coisa chamada humanismo, pelas frestas encontradas pelas pessoas e porque tais válvulas de escape acabam surgindo e são tão necessárias?

segunda-feira, 16 de julho de 2012

O livro das ignorãças - Manoel de Barros


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Sou um péssimo leitor de poesia, mas há algo em Manoel de Barros que me fascina. Creio que é sua proximidade com a natureza, não por acaso o Pantanal aparece constantemente. Vi em alguma entrevista de que Manoel de Barros não tem grande amor pela cidade, mas sim pelo Pantanal. Sua experiência na cidade não fora grande coisa, ao menos parece. Mesmo tendo viajado para várias cidades importantes, metrópoles, seu ambiente parece estar na mata.
Seus poemas parecem aproximar uma lupa sobre este verde que fascina, mas esta lupa de Manoel não parece cair no pecado do cientista, pois esta aproximação não busca o estudo de um assunto restrito esperando como conclusão a exaustão. Talvez busca nesta sua aproximação um distanciamento, dai sua referência a infância. O mundo adulto dá vontade de fugir, mas não para a cidade onde ninguém nos acha, mas para infância, quando a visão não estava tão viciada.
Esta aproximação com a natureza, apesar de poder parecer demais idílica e paradisíaca, acaba refletindo algo tão próximo de nós que acabamos não nos dando conta. De alguma forma Barros está falando do Brasil, que apesar de Belo Monte e toda uma sede de largas fatias da sociedade em busca de uma reprodução tropical do que se entende por Europa, vivemos num lugar diverso, plural, que não cessa de se mover. Esta é a mata, que além de cercar nossas cidades (Blumenau, Rio de Janeiro), cerca boa parte de nosso viver. Talvez seja mais necessário se refugiar para as montanhas do que trancar-se em casa. Creio que o selvagem transite entre a metáfora e o literal.
Sua proximidade com a natureza pode fazer com que sua poesia seja muito interessante a biólogos e deleuzianos. Já que é uma aproximação que não busca em momento algum naturalizar algo, arrisco dizer até que o contrário.
Tal desconstrução de lugares tão comuns não ocorre apenas por meio dessa constante figura do pantanal, a língua também entra no samba. No próprio título do livro já está explícito o que se encontrará repetidas vezes ao longo do livro. Como o autor bem indicou, agramaticar é parte fundante de sua poesia. O poeta brinca com a língua, faz da língua sua, se apropria dela e dança com ela, fazendo com que ela ceda aos movimentos necessários. Tudo isso ocorre numa tal harmonia que por vezes é custoso perceber. Tal atitude me lembra o que crianças muitas vezes fazem sem grande esforço, e nós tão orgulhosos da vida adulta, rimos tratando algumas vezes com escárnio. Sua agramáticação está intimamente ligada a natureza constantemente descrita, já que sua poesia parece ser em grande medida rizomática. E coloco isto considerando o fato de Manoel de Barros não ter ideia de quem seja Gilles Deleuze.
Não bastasse, Manoel de Barros se mostra como uma figura interessante, filiado ao Partido Comunista Brasileiro em sua juventude, o abandonou assim que Prestes e Vargas realizaram a famosa aliança, e quando fora indicado a academia brasileira de letras, preferiu não. Este poeta do pantanal pode orgulhar-se de escrever poemas que grudaram um péssimo leitor de poesia ao livro.

quarta-feira, 27 de junho de 2012

A era da Inocência - Denys Arcand (dir)¹


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Talvez antes tivéssemos mais. É difícil se posicionar no tradicional jogo do tempo e decidir se se prefere o passado ou o presente (enquanto o futuro se revela incerto). Dizer que a política já não existe mais ou de que está sem gás, talvez seja pura falta de visão para além de grupos partidários, pois movimentações não partidárias ou não arregimentadas aparecem cada vez mais, e vem se mostrando eficientes. Ou então colocar de que na política restou apenas frivolidades cotidianas, como o jeito que se escovam os dentes numa citação direta a Pondé, me parece também uma falta de visão para além de teorias totalizantes. Sabemos bem o que queremos, as vezes tão bem que acabamos caindo no pecado do cientista, o do foco excessivo. Porém falta algo mais em meio a política e a vida cada vez mais confortável – e estática – que galgamos ao longo do tempo.
Posso estar carregado de saudosismo, mas já indico que meu saudosismo com o passado se resume a uma máquina do tempo apenas para matar curiosidades e logo voltar. Entretanto o passado por vezes revela elementos distintos e que por vezes sejam interessantes. Mesmo vivendo em uma paz, uma não violência (física), incomparável com a Idade Média ou o mundo antigo, a falta de um desafio maior do que ascender em alguma carreira numa empresa de sucesso, ou a segurança de nossas rotinas acabam tirando algo do viver. Voltar ao passado se mostra uma conclusão de pouca reflexão, o que desejo é olhar para tempos passados o suficiente para mudar o presente. Dai a piada que muitas vezes possa parecer um retorno as histórias de cavaleiros. Precisamos de algo para lembrar que estamos vivos, e quiçá por vezes a dor sirva para isto.
E aqui entra Freud, autor que nunca li mais do que um ou dois textos, mas que parece evidenciar um dos inúmeros elementos modernos: a centralidade do sexo em nossas vidas. Podemos indicar o exemplo dos vitorianos, sempre tão vistos como gente que ignora o sexo. Entretanto é com eles que se começa a falar sobre o sexo como nunca, livros e trabalhos acadêmicos começam a surgir nesta época. Nossa opinião a respeito dos vitorianos se faz devido a nossa visão contemporânea sobre o sexo. Se me pedirem para indicar algo que indique a centralidade do sexo hoje, indicaria as comédias-românticas e suas inúmeras cenas envolvendo sexo ou em trocadilho direto.
Recordo que este texto é uma generalização, e para generalizar é necessário recorrer ao grosseiro.
Algumas vezes a vida só parece ter sentido graças ao sexo, as constantes utilizações de um vocabulário para “coisas boas” e sexo são recorrentes (orgasmo, gozar). Assim como uma fatal associação da palavra prazer. Parece que a única coisa que ainda faz muita gente se sentir viva é o sexo. O tempo e dinheiro que se dispende com isso é incrível, a atenção (desde Freud talvez) ao sexo está em um mesmo patamar. Me impressiona a necessidade cobrada das pessoas para que tenham uma vida sexual ativa. Celibato é muitas vezes sinônimo de piada. Talvez porque soe estranho abrir mão de algo (ao menos) visto como tão prazeroso. Não por acaso muita gente indique o sexo como uma necessidade tão básica quanto comer e dormir.
Entretanto podemos facilmente entrar numa crise ao percebermos esta limitação em que chega nossas vidas, percebendo que boa parte do viver está associado ao sexo. Resumir a vida a um único elemento soa desesperador, limitado, e logo aquilo que antes parecia indicar tão bem o quanto estávamos tão vivos, revela o quão previsíveis e repetitivos estamos. Então numa completa revolta podemos abrir mão deste elemento tão central de nossa vida moderna/pós-moderna/pós-pós-moderna, e nos darmos conta de que viver hoje em dia muitas vezes seja limitado. E talvez cheguemos a conclusão de que nos restou apenas o sexo por ainda não haver como nos privar de nosso corpo e nossa humanidade.
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¹ ou: "O que nos restou é o sexo". O texto não procura abordar unicamente o filme, mas sim reflexões que tem relação direta com a obra. Por isso recomendo assistir o filme, disponível aqui.

sexta-feira, 8 de junho de 2012

Por amor às cidades - Jacques LeGoff

     Alguns cálculos trazem de que no mundo antigo era necessário aproximadamente 10 pessoas trabalhando no campo para que uma pudesse viver na cidade. Morar na cidade era um privilégio, poucos podiam, não por acaso as cidades medievais eram pequenas. Além disso haviam os perigos recorrentes das pestes, guerras e turbas revoltosas e famintas. Os muros que serviam para proteger também matavam, seja de fome caso algum cerco durasse muito tempo, ou seja pela má circulação de ar, que somada aos esgotos a céu aberto, colaboravam para a proliferação de doenças.
     Entretanto temos uma tendência positivista em olhar para o passado sempre com certo desprezo. Como colocou Nietzsche certa vez, até podemos desejar voltar ao momento em que se era mais jovem, mas dificilmente desejaríamos voltar a mentalidade que tínhamos outrora. Pensando nesse passado acabamos ficando sedentos pelo futuro. De forma geral a herança positivista está inscrita em nossa pele, especialmente quando possuímos algum nível de escolaridade. O que se passa por fim é que, durante longo tempo olhava para a Idade média com desprezo, seja por ver este período como um momento de trevas, seja pelo desprezo a histórias de cavaleiros, cortes, príncipes, princesas e nobreza. O problema é que até então eu sempre tão admirador do romantismo, ignorava o povão da Idade média. Desconhecia os resquícios e conclusões referentes ao seu pensamento e comportamento.
     Jacques LeGoff parte da ideia de que a cidade medieval teria mais semelhanças com a cidade moderna, do que a cidade antiga. Partindo dai, ele se propõem a analisar e explicar uma série de questões sobre as cidades medievais e as modernas, tudo claro, de forma geral, o que é perfeito para curiosos que não desejam se especializar, ou simplesmente alguém que busca algum ponto de partida.
     Acredito, e posso cair num saudosismo barato, que a Idade Média fora um dos momentos mais vivos do ocidente (leia-se Europa). As pessoas gozavam de uma liberdade maior que a nossa, sua vida estava menos regularizada pelo Estado. Não por acaso o fortalecimento dos Estados vai marcar o fim da Idade Média. O que acaba desmotivando um pouco é saber que tais regularizações acabavam ocorrendo de outra maneira: se o ritmo de trabalho não era determinado pelo relógio, era ele determinado por obrigações com o senhor feudal, ou se não havia toda uma regularização da vida por meio do Estado, a Igreja marcava sua presença. De qualquer forma, períodos diferentes exigem instrumentos distintos para interpretação.
     Entretanto a relação dos medievais com a cidade era algo mais vivo do que hoje. A cidade era muitas vezes um lugar de fuga, não era necessariamente reservada aos mais ricos, mas tão pouco suportava todos. Algo estranho para nós tão desejosos por um direito a cidade. O que se passa é que a cidade medieval possuía populações numericamente inferiores as atuais, entretanto sua população se revelava muito mais ativa e criativa do que as populações atuais. O que me interessa nas cidades é viver elas, mas não viver como me parece sugerir o repórter local¹, mas um viver de conhecer as frestas, cafés, bares, praças, de andar a pé, bicicleta, ver as pessoas, flanar. E creio que olhar para estas cidades medievais, possam ajudar a nós “pós-pós-modernos” a nos relacionarmos e transformarmos nossas cidades. Até porque já demonstramos um cansaço por esta cidade das rodovias, ausente de calçadas e cinza (fuligem), entretanto não queremos abrir mão das possibilidades citadinas.
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¹ No caso o apresentador Alexandre José tem como um de seus slogans: “a voz de quem vive a cidade”. Vale ressaltar que o jornal por ele apresentado não exita em cair no sensacionalismo geral da televisão, noticiando em grande medida acidentes, assaltos. Um de seus jargões é “bota o vagabundo na tela”.

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Medianeras - Gustavo Taretto (dir)

     O filme toca num ponto crucial, a vida na cidade. Acredito que pouco pensamos em como é viver na cidade, simplesmente vamos tratando nosso cotidiano como algo simples e perfeitamente imutável. Até porque a relação mudança-tempo acaba favorecendo esta não percepção, que só se origina junto a alguma análise. A maior fatia absoluta de boa parte do mundo vive em cidades. Ao término da Segunda Guerra a maior fatia da população ocidental (Europa e Américas) vivia no campo, para chegarmos ao fim do século XX já com a maior parcela vivendo nas cidades, seja em pequenos apartamentos ou favelas. Sempre me utilizo destes dados e do simplismo para defender a importância do estudo das cidades. De qualquer forma minha escolarização inculcou-me que, se se pretende mudar algo, é necessário saber sobre isso.
     O quadro argentino é um pouco peculiar, pois parece que só existe Buenos Aires naquele país enorme (o segundo maior da América latina), sensação não só para nós estrangeiros, como acredito que de alguma forma para os argentinos. Há uma dependência e um foco muito grande sob Buenos Aires. Apesar da cidade estar constituída rigidamente sobre quadras (algo que eu sempre estranho), há um certo caos urbano. Em resumo, como em praticamente todas as cidades que conheço, falta planejamento urbano. Arranha-céus não deixam de surgir, o que em minha pobre opinião, só piora a situação de qualquer cidade.
     Interessante é como o filme procura dar certa vida a estes prédios, pensando-os em algo mais do que um simples lugar para ficar ou passar. Até porque a arquitetura terá um papel importante no filme. Não necessariamente de forma direta ou por padrões estéticos, mas construções estão ali quase como personagens. Elas são apresentadas e explicadas, deixando clara sua importância.
     O curioso é que uma das causas apontadas para um certo afastamento entre as pessoas e má qualidade de vida, é o péssimo planejamento urbano (planificación, em espanhol). Porém é rompendo com algum elemento deste planejamento que as coisas começam a se mostrar mais palatáveis. Talvez ai resida um ponto importante, romper ou esticar estes limites cotidianos podem nos ajudar. A exemplo da favela, que traz uma série de problemas advindos da sua ausência de urbanista, porém ao nos depararmos com ela de maneira mais demorada, podemos perceber que a relação é outra. E assim sendo suas limitações e possibilidades acabam sendo diferentes das que teremos numa cidade altamente planejada.
    O filme é bom para pensarmos nossa vida moderna atual. Através de toda a impessoalidade, da forte presença do computador, da cidade e arquitetura, acaba sintetizando de uma forma muito bonita (ah que fotografia!) um pouco do padrão desta vida moderna feita tão chocha e sem graça. Não hesitando em mostrar como relação são mediadas por computadores e outros meios eletrônicos. Por isso algo mais efetivo se desenrola no momento em que tais meios hoje tão comuns, estão impossibilitados de funcionar (um apagão).
Mas o grande mérito não está apenas no lado crítico e analítico do filme, mas sim na sua ausência de saudosismo. O desejo por uma volta a Buenos Aires da década de 1940-50, presente em muitos argentinos, não está ali. O desejo saudosista não se faz presente, o filme conduz uma narrativa por meio de problemas e questões atuais, sem esquecer de seu tempo. As poucas referências a um passado idealizado dão margem para isso. Gosto do fato de ser apontado como grande meio os imprevistos, as desfuncionalidades (apagão) ou até mesmo contornos e desprezo por regras tão rígidas como a das medianeras, sempre pálidas ou publicitárias. A janela que se abre é mais do que uma simples metáfora, até porque o diretor não decidiu gastar tanto tempo trazendo a arquitetura à tona para nada.




sexta-feira, 27 de abril de 2012

Nascimento da Biopolítica - Michel Foucault

Os cursos ministrados por Michel Foucault no Collège de France dão margem para uma série de questões. Apesar de percebermos ao longo da leitura das aulas que há um objetivo em foco, as aberturas sempre são possíveis. O que estamos lendo são as transcrições de gravações destes cursos, e assim sendo estamos lendo a fala de um sujeito, não a sua escrita. Notavelmente as aulas são menos rebuscadas que os textos. Algo simples de compreender, tanto pelas diferentes propostas (escutar ou ler), como pelo tempo dedicado a textos e a falas. Porém não podemos nos iludir de que tais aulas eram pouco preparadas.
      Pela razão da fala, a dispersão, voltas e delongas são lugares comuns. Percebemos isto ao prestar atenção numa conversa ou até mesmo quando ouvimos uma gravação nossa enquanto falamos com alguém. Percebendo assim, as particularidades da fala. Não bastasse, a densidade das aulas colabora para essa gama de possibilidades que sinto presente nos livros-cursos de Foucault.
     No resumo do curso, Foucault deixa claro que o curso “acabou sendo inteiramente consagrado ao que devia formar apenas sua introdução”¹. Sua preocupação era com o governo das populações viventes, questão já anunciada no curso anterior, Segurança, Território, População. Apesar de não entrar na Biopolítica de forma constante, o curso ai preparar a introdução para o assunto, que será fundamental para os desenvolvimentos seguintes de Foucault.
     Desde que assisti uma palestra que buscava debater a apresentar esta problemática da Biopolítica, me interesso pelo assunto. Percebo nesta questão algo fundamental de nosso tempo. O quanto há uma série de intervenções em prol da manutenção da vida biológica (estar vivo, não necessariamente viver). Há uma série de investimentos e intervenções realizadas no abrigo deste desejo. E penso eu, esta seria uma das partes mais interessantes de Foucault e ainda pouco explorado. Penso isso pela atenção dada à Vigiar e punir.
     É interessante como a economia se mostra enquanto elemento constante neste curso. Sua intenção é analisar questões de governo, mas percebe-se que em determinado ponto a economia, o governo (enquanto técnica, não instituição) e a vida estão relacionados de maneira complexa e cotidiana. Conforme minha leitura do curso se desenvolvia, observava como os economistas ocupam lugar de importância dentro do Estado. Como governantes estão atrelados a muitos economistas. Vide uma das declarações de Lula ao deixar a presidência, coberto de elogios, afirmando que desejava era ser economista. Ou até mesmo a importância das figuras de Guido Mantega e Delfim Neto.
     A relação não para por ai. Tal área do conhecimento acaba servindo também como grande legitimador, ou não, de um governo. Boa parte absoluta das críticas a regimes autointitulados de comunistas se baseiam por quesitos econômicos. A crise econômica Soviética é comumente apontada como elemento chave do “fim do comunismo”. Não por acaso há uma observação de Mises para explicar sua descrença no socialismo que é mais ou menos a seguinte: “só sei que a média dos cidadãos estadunidenses tem uma renda maior do que a média de cidadãos soviéticos”. Assim como o quesito para a grande maioria da população sobre um governante estar ligado a questões econômicas: inflação, empregos, PIB, potencial de compra...
     Ao tocar neste processo de construção da economia liberal, adentramos pontos sólidos de nossas convicções, até porque estes argumentos econômicos muito nos convencem. E até mesmo a União Soviética, então existente durante a execução do curso, mesmo se colocando como oposição ao capitalismo, buscava sua legitimidade por meio de uma “boa” economia.
     Toda esta ânsia cerceada pela economia, é acompanhada de projetos de sociedade. Um dos termos constantemente utilizados é Gesellschaftspolitik, que numa tradução livre seria: “política social”². Isto me lembra a observação de Delfim Neto a respeito da colocação do Brasil como sexto maior PIB e por isso sexta maior economia do mundo, de que não adianta termos o maior PIB se não possuirmos um projeto de civilização, não adianta fazer como a China que está no topo do ranking, mas que tem sua população em ritmo de trabalho escravo. E esta observação é feita de alguma forma nos mais variados elementos da mídia, ou na fala das pessoas no dia a dia, há uma vontade por este projeto social, muitas vezes inspirado de alguma forma no modelo ordoliberal alemão. Para arrematar esta questão por aqui e encerrar à força a possibilidade que se abria, dentro do liberalismo o que conduz o projeto de sociedade é a economia. Sendo assim, é perfeitamente cabível nossa crença de que o enriquecimento econômico acaba dando cabo a esta empreitada de alguma Gesselschaftpolitik. E nosso espanto se faz quando percebemos este enriquecimento, sem contudo haver uma significativa melhora de nossa vida.



¹ p.431
² Gesellschaft seria sociedade e Politik seria política. Temos assim uma política do social, que pensa o social, a sociedade.

terça-feira, 17 de abril de 2012

Hiroshima meu amor - Alain Resnais

     É difícil compreender o que fora o fantasma da guerra para a geração que sobreviveu e veio logo depois. Tal trauma me parece um dos pontos chaves de uma série de elementos do pós-guerra, seja a guerra fria, o crescimento econômico ou até mesmo o ano de 1968. Esquecemos que o único ataque nuclear fora realizado pelos EUA nos tristes episódios de Hiroshima e Nagasaki. As cenas iniciais do filme ilustrando o museu da bomba em Hiroshima só reforçam o horror que já supúnhamos. A bicicleta retorcida e as peles queimadas causam espanto. Vendo isto dá para entender porque, na Alemanha dos ano 1980 o pacifismo era tão forte, bombas não são legais, não importa a cor.
     Não sei porque mas constantemente recordava de uma série de escritos de Kawabata, em especial os Contos da palma da mão, onde os anos circundantes a guerra aparecem constantemente. O japonês é um remanescente da população universitária pré-guerra, acostumado a tensa rotina de estudos. E entre tantas coisas para se estudar havia a língua estrangeira, dai seu francês. É um sujeito bem sucedido, como o personagem de Mil Tsurus (também um remanescente universitário do pós-guerra), ambos já bem encaminhados a uma ocidentalização (e conscientes disso). Enquanto a francesa faz a vez da pobre camponesa francesa traumatizada. Revelando uma França ainda muito concentrada no campo, dos quais creio eu que nunca fui ate lá, ainda são parte importante do país.
     O envolvimento de ambos gira sempre em torno de suas memórias, seu passado, e o grande desespero é saberem que mais tarde vão esquecer. O esforço para não esquecer é muito grande. Por isso o museu, os monumentos e até mesmo todo o turismo em torno do ataque atômico. Como pode uma história de amor rodeada pela explosão de uma bomba atômica ser tão bonita? Como quebramos a cara ao sentir compaixão pelo amor de uma francesa pelo soldado nazista? A guerra fora o grande trauma, apesar do esquecimento. E todos os acontecimentos que giram ao redor desta guerra acabam reforçando o pedido para não esquecer, ou para uma aceitação do esquecimento.
     Imagino que ao mesmo tempo que doía esquecer, tal falta de memória se faz necessária para sobreviver, até porque se torna duro viver amargurado. É comum entre as pessoas que passaram por alguma experiência traumática (guerras, campos de concentração...) esquecer e evitar o assunto. No caso de Hiroshima moun amour o difícil é aceitar o esquecimento de algo que fora tão prazeroso. A vontade de não abandonar a cidade com o receio de perder suas memórias. E junto com elas a lembraças de que um dia amou.
     Constantemente o que ronda é o fantasma da bomba, da guerra e do esquecimento. Talvez Resnais faça no meio desta trama um pedido para que não se esqueça, as fotos e a silenciosa passeata parecem pedir por isso. O que é bacana pensar pois se entende segunda guerra até hoje como os bonzinhos contra os malvados nazistas, sendo que toda uma série de atrocidades ficassem esquecidas.
     Mas também não se pode afirmar que o filme condene as pessoas pelo esquecimento, a lamentação delas não parece indicar isto. Talvez o filme seja bom para nos lembrar que esquecemos, mesmo traumas (marcas) tão profundos, coisas que tanto nos fizeram viver ou desejar a morte. O trabalho de lembrar algo é muito complicado, pode ser doloroso, como as lágrimas daquela francesa chorando a morte de seu soldado alemão.


terça-feira, 20 de março de 2012

O chefão - Mario Puzo

     Geralmente não gosto de falar sobre algo em que todos estão falando, ou fazer posts em homenagem, mas como por mero acaso li o livro do filme a pouco tempo, assim como há tempos desejava escrever algo sobre a fatídica história, publico esta resenha tosca. Diferenças entre o livro e o filme ficarão de lado, dois clichês já são demais.
     Mario Puzo intentava ser escritor já fazia algum tempo, sem contudo lograr êxito. Sua magnun opus acabou se tornando “O Chefão”. O livro alcançou grande sucesso na época, o que mais tarde ocasionou o filme. A história é densa, Puzo consegue passear por entre os personagens, alternando quem é o principal, não havendo tão tradicional figura de forma fixa. Exceto Tom Hagen que se mantém constantemente coadjuvante, porém presente, o que creio, colabora para sua figura de “Consigliori”.
     O que me impressiona é o conhecimento de Puzo sobre este ambiente. Apesar de ter-se rendido a fórmulas do mercado ao construir a obra, alguns elementos destoantes do senso comum aparecem. Sempre considerei a tradução do título péssima. O padrinho se revela um bom título, pois revela muito do ar da obra. A mística de Don Corleone está no fato de ele cuidar das pessoas, negociar com elas, não impor coisas a elas, mas sim convencê-las de que devem fazer algo, o que vai ficando claro pelos laços criados de amizade e por meio dos favores. Por isso Don Corleone é um Padrinho e não um chefe, pois estes últimos mandam, enquanto o padrinho argumenta.
     E essa argumentação, ou até mesmo a Omerta, vão nos levando a compreender a lógica por trás da máfia, que não vai se resumir a simples bandidos. Por isso o Don se sentira tão ofendido no momento em que Ameringo Bonaserra lhe pede para matar, sua organização não era de ladrões e assassinos. A feição da família pelo Don e sua esperteza vão nos cativando, nos levando até mesmo a pensar como Kay num dado momento do livro: “como podem falar coisas horríveis de um homem tão bom?”.
     A questão da amizade é crucial ao longo do desenrolar do livro, pois é graças a elas que o Don terá sua influência, é graças aos favores que a família Corleone terá políticos, policiais, juízes e outros, a seu favor. A amizade aqui acaba se revelando um mecanismo de controle, sem contudo parecer um.
     Sempre analisei a figura de Don Corleone como dentro da mitologia do self made man. Gosto do fato de Puzo colocar que junto com os negócios ilícitos das famílias, negócios lícitos acompanhavam. O que me remete as atuais discussões sobre corrupção, que acabam tendo como parâmetro a questão legal. O livro nos mostra que nem tudo que é legal está dentro da lei, por assim dizer.
     Desde que li o livro venho observando como esta cosa nostra acaba sendo uma forma de organização social que haverá num dado momento na sicília, e que mais tarde vai ser importada para os EUA, e conforme o mundo muda, vai ganhando contornos maiores de negócios e forma de ganhar dinheiro.
     Gosto o fato do livro não olhar com desprezo nem cheio de amores para os personagens. Acredito que Puzo não fica falando besteiras completas sobre mafiosos, como sempre é fácil fazer, mas fala com propriedade sobre eles. Agora eu gostaria de saber se Mario Puzo estudou sobre isso através de livros, ou se ele sacou tudo isso durante sua infância num bairro de fama em Nova York, o Hells Kitchen?

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Maus - Art Spiegelman

     A Polônia me parece ser um ponto chave na segunda guerra, foi após a invasão deste país que a historiografia tradicional assinala o inicio do conflito. Geralmente compreendemos a Polônia, um país de menor importância, sendo invadido pelos terríveis nazistas. Esquecemos que a Polônia constituía parte do Lebensraum de Hitler, e que de alguma forma a Alemanha exercia profunda influência na Polônia (parece que ambos os países tem uma curiosa e complicada relação há muito tempo). Para piorar a situação dos poloneses, eles meio que eram desprezados pelos alemães nazistas por serem eslavos, e desprezados pelos russos soviéticos por serem “eslavos menores” - relação antiga já perceptível na obra de Dostoiévski – e em 1939 a Polônia se viu invadida por ambas nações, russos e alemães, sendo repartida entre ambos e criando um insignificante governo geral ao modelo de Vichy.
     Afastando-se das letras grandes e lendo as pequenas, Art Spiegelman joga uma lupa sob a ocupação nazista através dos relatos de seu pai¹, sobrevivente dos campos de concentração. O que me fascinou fora imaginar a localização da Polônia, quase que espremida por entre os países circundantes, e com uma pluralidade linguística alta, ocasionada devido a pluralidade étnica. Temos judeus asquenazes falando Jüdisch, poloneses e alemães, gerando uma mescla cultural e linguística que me interessa. Entretanto toda esta aparente mescla parece estar rodeada por certa tensão. Cavando um pouco mais veremos que a perseguição a judeus data de muito tempo, e infelizmente atritos entre grupos são muito comuns.
     A beleza da obra esta na proximidade e intimidade que vamos tendo conforme a leitura avança, com as pessoas e sobre as marcas do conflito, principalmente a perseguição e confinamento em campos de concentração (a maior parte deles estavam localizados, por sinal, na Polônia). Através dos relatos podemos entender como as pessoas conseguiam sobreviver. E como o campo significava morte certa.
     Os diferentes grupos étnicos são retratados por meio de animais, inteligentemente escolhidos, e neste caso Spiegelman leva vantagem ao ser judeu e poder retratá-los na figura de ratos, o que num primeiro momento causa espanto e parece arriscado, só colabora para comover e perder o caráter pejorativo contido na imagem (por sinal criada pela propaganda nazista). Me pergunto como as pessoas conseguiam ser tão rudes, mas observando a atitude delas frente a situação, infelizmente acabo entendendo que se fosse hoje em dia, elas dificilmente seriam diferentes. Por exemplo, para se conseguir uma ração extra dentro do campo, ato que poderia significar a continuidade de sua vida ou não, era preciso abrir mão de certas coisas, em resumo mover-se feito malabarista por entre os guardas do campo para obter pequenos favores.
     Talvez o que mais colabore para emocionar conforme a leitura se desenvolve seja a figura do pai de Art Spiegelman, um sujeito sisudo, um tanto individualista (difícil não ser num campo de concentração) e até mesmo preconceituoso quando do episódio da carona.





¹ Que residia no setor de ocupação nazista, deixando o histórico da ocupação soviética de lado, para mais detalhes assistir Katyn de Wajda.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

O Natimorto - Lourenço Mutarelli

        Conhecia Lourenço Mutarelli pelo livro e filme o cheiro do ralo, creio que junto com Mia Couto e Manuel de Barros ele representa o que vêm sendo produzido de melhor na literatura contemporânea de língua portuguesa. Sua escrita flui, como poucos escritores conseguem fazer, e quem escreve sabe o quanto isto é difícil, há muito trabalho para se alcançar este nível de escrita, até porque não existem fórmulas para escrever.
        Já consagrado no mundo dos quadrinhos, que infelizmente desconheço, aventura-se na literatura com cheiro do ralo, escrito segundo nos conta este homem pantufa, numa semana de carnaval. Seu hábito “caseiro”, ritmado a muito trabalho, café e cigarros, estão impressos no pouco contato que tive com seu trabalho (resumido em dois livros). No caso do Natimorto, o desejo do sujeito em ficar numa sala sem sair é contagiante e ao mesmo tempo claustrofóbico, as indagações feitas pela mulher de voz abençoada faziam eco as minhas. Os diálogos rápidos que conduzem sua obra dão a fluidez e sagacidade necessárias.
        Ultrapassando uma simples relação mediadas pelo sexo e o corpo, o autor vai conduzindo um personagem principal muito esperto e de raciocínio afiado, sem deixar de lado sua excentricidade. A fuga do mundo “lá fora” atinge em cheio muitos enseios meus – o que já é alguma coisa. O personagem principal não precisa daquele mundo chamado de real e existente, tudo ocorre ao redor de uma cama mofada em constantes xícaras de café. A comida é desprezada.
Há toda uma relação especial com o andar das coisas, uma fixação kafkaniana com o que está por vir. Mesmo sabendo que fumar pode lhe matar, o prazer esta em correr em alta velocidade e de pés descalços pelo fio da navalha. A coragem é necessária para fugir. Pode parecer uma observação vazia, mas há um identificação entre o agente e Raskolnikóv. Sua excentricidade e delírios caminham juntos. Não crime, pecado ou arrependimento, apenas uma mente conturbada, extremamente criativa e afiada. Odeio tais comparações, mas ambos possuem uma sinistra relação com seu quarto.
        A relação com a cidade está ali também. A rodoviária, o hotel, as indas e vindas. Mesmo trancado no quarto, a cidade pulsa ali, quase feito organismo vivo, que não se vê mas sente. Igual as batidas do coração ao colar a mão no peito. A eventual “fuga” para o sítio arquitetada pelo maestro, não deixa de ser um pequeno retiro num quarto de hotel. É no microcosmo deste ambiente que as historietas ganham vida. É entre a xícaras de café que elas estão. Apesar de muitas vezes terem um simplismo, não são em momento algum menos belas. Como escutei uma vez, “algumas vezes precisamos dizer o óbvio”. Por vezes isto ocorre na obra, mas não é uma obviedade boba, vazia e sem novidade. Até porque, o ideal é dizer algo duas vezes, pois quem diz sempre é o outro para quem escuta.
        Mutarelli dá vida de forma sóbria a consistente a estes personagens urbanos que podemos contemplar sentados numa mesa em algum lugar movimentado da cidade enquanto consumimos pacientemente nossa xícara de café.

sábado, 21 de janeiro de 2012

Notas Sobre Gaza - Joe Sacco

      A situação complicada entre Israel e Palestina existe praticamente desde que fora criado o Estado de Israel. Mesmo tendo alguma familiaridade com o assunto, ele é sempre tema complicado e confuso. Talvez por isso que nesta obra Joe Sacco procura cavar mais fundo, talvez para compreender melhor as origens deste conflito.
     Percebe-se que as proporções na década de 1950 eram completamente distintas das atuais, não percebemos uma organização como a FPLP do lado palestino, o que acredito lhes dará algum “autonomia” mais tarde. Mesmo assim fiquei impressionado com a capacidade entre os palestinos de se organizarem com tão poucos recursos. Creio que as opções eram poucas também, o que gera poucas opções.
     O que fui percebendo ao longo da leitura da obra, foi que, diferentemente do que muitos religiosos vão dizer, tal conflito não teria origens bíblicas, o que muitas vezes acaba naturalizando a situação. Esta situação tenebrosa envolvendo o Estado de Israel fora construída ao longo dos anos. Sabemos que Israel já havia se armado fortemente desde sua criação, e que conflitos entre Israel e árabes estão ai desde a fundação do Estado.
     Muita coisa mudou nestes três períodos (1950-1990-2000) que Sacco analisa. A década de 1950 seja talvez a mais enigmática, e o que mais percebi é que o nacionalismo palestino não está bem formado. Percebe-se como o pan-arabismo fora utilizado por Naser na busca de atender seus interesses. Certa vez escutei um professor universitário marroquino falando o quanto este pan-arabismo fora algo complicado, que havia deixado muita gente decepcionada. Lembrei na hora da figura de Naser, e dos relatos coletados por Joe Sacco sobre os fedayeen recrutados pelo serviço secreto egípcio para executar investidas em estilo guerrilha contra tropas israelenses.
     Segundo me parece o grande discurso hoje já não se pauta mais na destruição do Estado de Israel, mas sim na criação de um Estado Palestino, e a resistência armada já não parece ser a opção favorita para obter-se o reconhecimento do Estado palestino. A comparação entre Davi e Golias é difícil de não ser feita, Israel tem os soldados mais bem treinados, armamento de ponta, forte economia e IDH elevado, uma exceção na região. Enquanto os palestinos estão jogados em campos de refugiados desde a década de 1950 e tais campos já viraram cidades. A polêmica construção do muro que iniciou em 2004, parece só ter piorado a situação palestina, abocanhando boa parte das reservas de água assim como aumentando um pouco sua extensão territorial. Apesar de uma certa calma na região (se comparada com períodos anteriores é claro), a resistência da população palestina continua, desde não utilizar a água da companhia israelense, até uma que é apontada por uma senhora nas paginas de Faixa de Gaza, onde ela pressiona os meninos que tacavam pedras nos tanques e tanques-trator que destruíam casas, para que eles logo tivessem filhos, o maior número possível. De qualquer maneira, resistir nunca é fácil.
     Os israelenses vêm mudando também, recentemente no ano de 2011, 1027 palestinos que estavam presos em Israel foram trocados por um soldado israelense. Apesar das mediações do Egito e do grupo Hamas, houve forte pressão da população israelense e da família do soldado para que o acordo ocorresse. Assim como passeatas feitas por israelenses a favor da criação do Estado palestino também ocorreram ano passado. O que demonstra uma vontade por mudança em Israel também, que me pareceu ignorada pela mídia geral, onde liberdade e direitos só precisam ser reivindicados entre os “bárbaros povos árabes”.
     Não acredito que um conflito de marcas tão profundas se resolva logo, até porque algumas políticas agressivas de Israel¹, me parece, custarão a cessar. E mesmo com esta mudança no quadro, não temos necessariamente uma melhora na situação, creio até que a situação dos palestinos vem se tornando mais complicada e esquecida pela mídia desde a morte de Arafat. E se dependermos de jornais como o famoso JN (mais visto no Brasil) onde interesses se escondem sob uma pretensa neutralidade, pouco se saberá sobre o assunto.


sábado, 7 de janeiro de 2012

Crônica de uma Morte Anunciada - Gabriel García Márquez

         Teorias sobre prever o futuro existem várias. Há o tarô, búzios, astrologia e até mesmo crenças maias maquiadas de ciência (mesmo que isto não existisse para eles). A curiosidade pelo futuro, próximo ou distante, muitas vezes é o motor para nos determos sobre histórias variadas. Alguns filmes e livros parecem perder toda a graça quando já se sabe o final. Mesmo sendo desejoso em não saber o máximo possível antes de tomar contato com algum estória, Crônica de uma morte anunciada te impede de não começar sabendo o final. Na primeira linha, na orelha e no título do livro já sabemos que alguém será assassinado, que Santiago Nasar vai morrer.
        Segundo comenta-se por ai, é preciso mais do que talento para receber um prêmio Nobel, e sem dúvida talento não falta a Gabriel García Márquez, pois conseguiu contar uma história onde se sabe o final desde o princípio. E o cômico é que seu talento é perceptível por isto. Como li uma resposta certa vez, sobre a possibilidade de forças ou elementos que regem a História, dando alguma direção a humanidade; saber que um comboio vai até Orleans não elimina todo o leque de possibilidades das ações que podem ser tomadas pelos passageiros ao longo da viagem¹. Sem dúvida o livro faz isto, nos demonstra que entre o começo e o fim, uma série de elementos e fatos atravessam o momento final.
        Não importa tanto o final da história, que se sabe desde a primeira página, mas sim o desenrolar da narrativa, toda a teia de elementos que conduzem a tal acontecimento. E aqui entendo perfeitamente a histórias sem final de Kaspar Hauser.
        O livro parece tentar nos inserir no mundo colombiano popular. Há algo que me parece comum entre os latinos, especialmente os do novo mundo. A vila descrita no livro me recorda aquelas, que parecem constituir um lugar comum em nosso imaginário: a cidadezinha. Já conhecemos o arquétipo da vila, poucos habitantes, todos sabem quem é quem e tudo o que se passa na vila. Residindo nela há uma família rica de extrema influência e um padre que serve de mediador para os mais variados assuntos. A vida ali apesar de rude, aparenta ser boa. Há uma linda garota que será conquistada por alguém. A vila está presente neste livro de Márquez, em Árido Movie e O Alto da Comparecida, mesmo assim, cada obra busca um objetivo distinto. Suspeito que esta vila pitoresca surja com os românticos alemães em sua busca pelas raízes, pelo essência do Volk.
        Este embrenhar-se no popular parece uma busca pelo real ou pelo verdadeiro, contanto que o narrador da história busca compreender o caso. E para isto não abre mão dos relatos deste povoado, onde cada pessoa viu um fragmento ou sabia de algo relacionado ao fatídico assassinato, nem hesita em buscar os autos jurídicos tratando de tal acontecimento.












¹ “Se é verdade que a providência dirige a História e que a História é uma totalidade, então o plano divino é indiscernível; como totalidade, a História escapa-nos e, como entrecruzamento de séries, é um caos semelhante à agitação de uma grande cidade vista de avião. O historiador não se sente muito ansioso por saber se a agitação em questão tende para alguma direcção, se tem uma lei, se há uma evolução. É demasiado claro, com efeito, que essa lei não será a chave do todo; descobrir que um comboio se dirige para Orleans não resume nem explica tudo o que podem fazer os passageiros no interior das carruagens”. VEYNE, Paul. Como se Escreve a História. Edições 70: Lisboa, p.37.

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

A Polícia das Famílias - Jacques Donzelot

      Por meados da década de 1950 se anuncia uma drástica crise da família, que segundo me parece, continua sendo propagada aos quatro ventos. Mas pouco se reflete sobre o assunto, e a discussão se dá com respostas prontas. Este livro em muito me ajudou a pensar sobre o assunto, talvez um dos melhores. Este texto passeia pela História e é norteado pela figura do jovem, tendo como base alguns outros textos lidos. Não pretendo para o texto nada mais do que algumas coisas que zumbiram na minha cabeça conforme lia esta obra de Jacques Donzelot.

      Duas guerras seguidas fizeram com que os homens fossem para o front e as mulheres para as fábricas, dando assim maior “liberdade” para os jovens que fugiam do julgo rigoroso do pai (especialmente para as meninas) e vigilância dobrada para a mãe. Não que seus pais deixassem de os vigiar, mas eles vigiavam menos devido ao trabalho ou a guerra. Logo após a segunda guerra se investe num nicho de mercado jovem, criando roupas, filmes, revistas, boates e músicas específicas para tal faixa etária. Donzelot acaba sendo fruto deste pós-guerra, apesar de certa distância temporal (a pesquisa é da década de 1970), questões como a revolução sexual e a contracultura ainda estavam na pauta do dia, e por sinal capitaneadas por jovens.
      Cavando um pouco mais fundo, sem buscar algum estado de perfeição originário, o trabalho vai se remeter em boa medida ao século XIX, atravessando o XVIII e o XX nos momentos necessários ou desejados. O tempo norteador é a Revolução Industrial e o advento do capitalismo, que vão interferir diretamente na constituição familiar. A mudança da oficina para a fábrica interfere em mais do que a produção de bens, vai mudar a constituição da família, e esta seguirá acompanhando as mudanças. Se antes trabalham todos juntos num cômodo da casa sob o olhar do chefe da casa, na fábrica trabalharam em setores e vigiados por um capataz. O curioso é que até recentemente era comum quase toda uma família trabalhar na mesma fábrica, mesmo que eecendo cargos em setores completamente distintos.
      Ora, tais câmbios somados a delinquência juvenil que começa a ser vista como problema (vide Oliver Twist) e os crescentes números de órfãos, alarmavam variados setores da sociedade. Será até mesmo sugerido que os órfãos fossem alocados em colônias do além-mar. O que se percebe é uma preocupação com a “utilidade” destes cidadãos, e talvez a vida destas crianças e jovens sem pais acabava se mostrando como um transtorno devido os dois grandes grupos em que estes se concentravam: orfanatos e delinquência. É bem compreensível que o problema esta no não trabalho destes sujeitos, pois num grupo os temos em orfanatos consumindo recursos, e noutro roubando, corrompendo o sistema de compra e venda mediado pelo dinheiro que deve ser ganho por meio do trabalho. E aqui a família talvez fosse muito mais um elemento policial do que “amigável” como gostamos de imaginar. A falta de família ocasionava a ausência de pais norteado as ações dos filhos (geralmente os colocando para trabalhar e gerar receita).
      Acho cômica a falta de originalidade atual em soltar toda a carga para os pais, pois é o que fazem no século XIX. Na tarda surge uma sociedade de pais, que mais tarde criou uma escola de pais. A ideia era reeducar os pais não preparados, ou então prepará-los ainda mais para esta função tão complicada e sensível que é ser pai. O curioso deste pesado fardo dado aos pais como os grandes responsáveis pela “má educação” de seus filhos se torna estranho quando tomamos contato com uma estatística da década de 1950, onde se demonstra que boa parte dos pais não sabiam o que seus filhos faziam ou onde estavam nas horas vagas, simplesmente por estarem fora de casa trabalhando. Assim como a maior parcela de tempo do (nascente) adolescente era passada com seus pares, na escola, lanchonetes e afins, do que em casa com sua família. O curioso é que esta tempo fora de casa mediado por outros reguladores que não a família (escola, amigos, ambientes sociais) vão gerar o surgimento deste modo de vida jovem, que curiosamente vem se tornando cada vez mais desejado (não trabalhar, gastar dinheiro, ir a festas com música barulhenta).
      O que muitas vezes não se percebe é que para além dos pais aquilo que chamamos de sociedade dá grandes contornos. Eventos grandes como as duas grandes guerras, vão ocasionar na saída da mulher de dentro de casa. Da mesma forma que boa parte delas não deseja voltar para dentro de casa é incabível obriga-las a isto, até porque conquistaram um lugar importante, ao menos, no campo profissional. O trabalho foi se afastando cada vez mais do lar, se as oficinas eram coladas a casa, as fábricas já serão afastadas. Contudo as vilas operárias nunca ficavam muito distantes do local de trabalho. O que temos hoje já chega a ser absurdo, com modelo dos subúrbios americanos, que ficam a quilômetros de distância do local de trabalho (por sinal é nos 70 que ocorre este “êxodo citadino”), deixando os centros das cidades desertos ao fim do horário comercial. A setorização das cidades (bairro das compras, bairro dos bares, bairro das residências), acaba influindo no passar de nosso tempo diário, aumentando cada vez mais nossos gastos de tempo e dinheiro, com locomoção. Somado ao nosso modelo de vida sonhado, recheado de viagens, eletrodomésticos, produtos importados e conforto financeiro, o planejamento familiar acaba diminuindo a quantidade de filhos. Não queremos abrir mão do sábado a noite, nem das viagens e da carreira de sucesso, estes elementos interessam mais a maior número de pessoas, do que viver como nossos pais.
      Dai que me pergunto toda vez que escuto sobre a tal crise da família, de que família estamos falando? Da bíblica, onde temos escravos, poligamia e pagamento do dote (que vai na contra mão de nosso amor romântico), da medieval que “vendia” seus filhos, da grega onde a mulher era quase um bem material ou da nuclear aburguesada?
      Mesmo com um fim ou crise da família anunciados, o fato mais curioso é que ela não deixa de existir, mesmo mudando seu formato e configuração, ela continua lá, e poucas vezes nos atentamos para isto. O formato de família muda, até porque nem sempre foi o mesmo e tal instituição não ocupa a centralidade desejada por muitas pessoas. Há uma relação nisto tudo, que me parece típica de nossa modernidade, onde desejamos algo, sabemos de alguma forma que teremos que abrir mão de algumas coisas para alcançar isto, mas não cessamos de nos lamentar e encolerizar pelo que abrimos mão. E nisto lembro da quantidade de vezes ao dia que tomamos contato com coisas que dizem respeito as tais tradições da sociedade e o career opportunites, e a vontade de se colocar a venda num alto preço dentro do mercado de trabalho. Creio por fim, de que tal lamentação pela instituição familiar, apenas pode se dar em nossa contemporaneidade.