sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Selma - Paul Webb (argumento)

     É possível afirmar que, até agora, o filme que melhor conseguiu retratar a situação da segregação racial nos Estados Unidos da América e a luta dos movimentos pelos direitos civis dos anos 1950-60 fique por conta de Selma. E isto não se dá pelas boas atuações, figurino, e outros tantos detalhes técnicos e estéticos que estão sim muito bem apresentáveis, mas pelo fato de não se omitir em demonstrar a violência constante, que era utilizada (e de alguma forma ainda o é) para manter e exercer um racismo cotidiano. O racismo, e ligeiramente incluiremos o machismo aqui também, é uma prática pautada pela violência, pois é apenas por meio dela que uma separação inexistente e possível apenas no campo das ideias, seja levado a cabo. Afinal, apenas com muita violência, muita porrada e morte, você consegue tirar alguém de sua terra natal, obrigá-lo a uma situação degradante e humilhante, e assim apagar qualquer perspectiva no horizonte do tempo.
     E o filme não se ausenta do debate político que ocorria na época, e procura nos inserir de forma consistente e histórica na questão. Não se limita a política institucional dos partidos e das estruturas governamentais do Estado, e vai nos movimentos da sociedade civil e aqueles que podemos chamar de momentos/movimentos espontâneos ou autogeridos, afinal de contas tudo isso é parte fundamental da política. Como que numa espécie de mediação, temos a importante e central figura de Martin Luther King, pastor e principal figura do recorte elegido. Ele acabaria simbolizando aquilo que seria a organização da sociedade civil, por trazer a movimentação política e seu debate fora das instâncias burocráticas dos partidos e Estado, mas sem negar seu papel dentro de uma organização já estruturada e instrumentalizada num claro debate com o fronte burocrático. Outro fato que não podemos esquecer, é o de Luther King ser um pastor de uma igreja evangélica estadunidense. Podemos, e talvez devemos fazer uma mirada crítica pelo fato de apagarem e não darem tanta prioridade a outras articulações negras da época como os panteras negras1 e uma reduzida abordagem de Malcom X, mas ao mesmo tempo a abordagem dada nos ajuda a entender a difícil escolha e manutenção de um movimento enquanto pacifista e não-violento, sem adoção de uma postura passiva – e como tudo isso foi transbordado de sangue. De maneira resumida, podemos dizer que havia uma certa consciência de que, adotando práticas violentas o aparelhamento governamental (branco e impregnado de racismo) teria legitimidade pública para sufocar até o último suspiro, algo que de alguma forma ocorreu com os perseguidos Panteras Negras. E ao mesmo tempo, como adotar esta postura não fora nada fácil frente um cotidiano violento e friamente assassino.
     Em outro ponto retratado pelo filme, temos o governo de Lyndon B. Johnson, na época presidente dos EUA, e que promulgou por fim uma série de direitos civis. O cuidado em retratar esta esfera é muito válido, pois há uma clara intenção em não retratar Johnson como um racista-sulista típico, que acreditava piamente na segregação como uma garantia legal das leis “naturais”, mas ao mesmo tempo são muito realistas também em retratar como esta questão estava longe de ser uma prioridade para ele, e que estes avanços (como sempre) ocorreram de fato graças a ampla mobilização da sociedade civil. E ao mesmo tempo podemos perceber como King só conseguia estabelecer um diálogo mais consistente com o governo, graças a sua figura de persona moderada frente a outros movimentos negros, no caso Malcom X e sua postura menos pacifista, e como esta pluralidade de moimentos gerava uma situação que obrigava os EUA a repensar sua postura no campo social. Desta forma o filme consegue retratar bem a complexidade política do período, e como as articulações da sociedade civil foram vitais para a garantia de estabilidade provida pelo Estado.
     Podemos assim fazer uma última observação sintética, de como o filme pode servir de ótimo instrumento para nos inserir nas tensões do período, com todo um cuidado em demonstrar a importância de movimentos políticos fora de organizações estatais ou partidárias, e ao mesmo tempo nos ajuda a entender como estes direitos não foram dádivas, já que percebemos uma resistência clara em executá-los, já que boa parte deles já haviam sido implementados na administração Kennedy, mas como bem percebemos sua execução e efetivação era uma questão ainda muito distante, afinal este era um vespeiro. E por fim, como a figura de Martin Luther King era cercada e apoiada por outras tantas figuras que acabaram ganhando menor destaque, mesmo sendo tão vitais quanto ele, demonstrando como por mais importante que seja a figura de um líder, as movimentações não ocorrem única e exclusivamente por meio deles.

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

O mal-estar na civilização - Sigmund Freud


Li este clássico de Freud para pensar melhor o processo civilizador de Elias. No segundo volume da obra homônima, as referências de Elias para com o campo da psicanálise eram claras e ajudavam a dar conta de sua problematização. Em larga medida, ambos os autores querem entender, por caminhos e objetivos distintos, como aquilo que chamamos de barbárie pode ocorrer, mesmo em espaços que constituem aquilo que tranquilamente chamamos de civilização. Ambas as obras tem próximos de si a ascensão nazista, o que no caso de Elias será drástico, ao ponto de seus pais serem mortos graças a perseguição aos judeus.
De alguma forma Freud vai prestar atenção nas questões que estariam para além do indivíduo, e que acabam o cercando e criando condições e regras para além de si, o que em largas medidas seria a sociedade. Desta forma, um entrelaçamento entre Eu, Id e Super-eu faria sua dinâmica. Tendo o sujeito que aprender a conviver num equilíbrio entre suas pulsões, seus desejos imediatos, e as questões de freio, como a moral e as barreiras ou regras sociais.
Uma crítica ao ideal de civilização, perseguido loucamente, se forma. Havendo o Homem ao mesmo tempo construído maravilhas sem fim graças a seu processo civilizador, ao mesmo tempo temos uma questão psíquica difícil de lidar, e que pode gerar absurdos. Sem apontar uma saída, sem passar nenhuma receita, Freud nos adverte de que se mantivermos indivíduos muito sufocados, sob um enorme peso da civilização, isso gerará uma disfunção entre as três esferas do sujeito, mas por outro lado não podemos querer que o Eu se sobreponha a todas as outras esferas, pois assim teríamos a mais completa balbúrdia, criando uma situação de instabilidade pouco agradável. De alguma maneira os sentimentos exercem um peso maior do que outros elementos mais bem valorizados.

sexta-feira, 7 de agosto de 2015

A identidade cultural na pós-modernidade - Stuart Hall

     Este livro de Stuart Hall acabou se tornando bibliografia básica quando a discussão gira em torno da identidade. Os motivos para isso não são para menos, afinal, com muita destreza ele consegue sintetizar as discussões em torno da identidade em basicamente cem páginas. O ponto de partida é a diferenciação entre três tipos de sujeito, e consequentemente de identidade.
     Estes três sujeitos são: A) o sujeito do Iluminismo, B) o sujeito sociológico, e por último, C) o sujeito pós-moderno. Em linhas gerias o sujeito do Iluminismo é entendido a partir de uma essência, e desta forma seria o que se é. Este é um sujeito indivisível, que é o que se é e não poderia ser outra coisa. Enquanto o sujeito sociológico tem a sua identidade formada a partir do meio em que vive, e que seu desenvolvimento, único e individual, se dá pelas experiências em um dado tipo de sociedade. Por sua vez o sujeito pós-moderno é fragmentado, mas não por não possuir identidade em momento algum, mas sim por agir através de uma infinidade de identidades, sendo pela manhã um trabalhador, pela tarde um estudante, pela noite um marido, oscilando seu vinculo identitário a cada instante. Um outro exemplo desta identidade pós-moderna, seria a de um sujeito que participa de alguma tribo urbana, que numa hora seria um clubber, noutra um londrino, depois um inglês, quem sabe um trabalhador, quem sabe um estudante, o que é claro para todo mundo é que suas identidades são múltiplas, gerando assim identificações. Reconhece-se que diferentes identificações são invocadas ao longo do dia, sendo a existência composta e reconhecida não mais como algo preso a uma identidade coesa e indivisível.
     Os embates ficam mais interessantes quando temos a questão nacional em jogo, pois o processo de globalização, que coloca este sujeito pós-moderno em cena, parece apagar cada vez mais qualquer resquício dessa identidade nacional, ou até mesmo local. Porém, o que podemos perceber de maneira mais atenta, é como estas identificações estão numa dialética constante, sendo assim, o processo de globalização está muito mais ligado a produção de novas identidades, e não a destruição da identidade. E desta forma, por mais que a identidade local apareça com cada vez mais força, isto é um processo ligado a globalização, e poderíamos dizer, tal qual é o caso das cidades do estado de Santa Catarina, isto seria uma forma de inserir-se melhor na globalização, já que seria um produto diferenciado. Hall traz a questão, de que em tempos de global, as fronteiras distantes estão ao alcance de uma passagem de avião, e desta forma o sujeitos estão numa tradução, mediando dois mundos. Sendo assim, não podemos entender a globalização como um simples processo de apagar identidades entendidas como seminais, mas sim como produção de novos significados, novos vínculos identitários, porém tudo isso da forma desigual que a globalização produz.

segunda-feira, 29 de junho de 2015

A cidade polifônica - Massimo Canevacci


A cidade emite sons. A cidade comporta mais elementos do que sua forma física. A cidade é polifônica, pois não se constitui de maneira heterogênea. Como o próprio nome indica, Massimo Canevacci vai procurar decifrar os sons, significados e linguagens na cidade de São Paulo durante a década de 1980. Estamos falando de um momento muito particular, se por um lado temos a redemocratização, de outro temos um país de capital cada vez mais aberto. Tudo isto reflete no urbano.
A grande sacada do autor com este livro, é sua atenção para a comunicação urbana. Esta comunicação não é a entre duas pessoas, mas sim a da cidade, de seus prédios. Assim como os outdoors, as construções também têm signos. Como a cidade comporta mais do que um tipo de gente, temos vários sons sendo produzidos. De alguma forma é a dialética silenciosa da cidade, onde devagarinho uma construção é derrubada, sua fachada, estrutura e toda composição arquitetônica, construída num tempo e carregada com seus significados, perde seu lugar para que se construa algo novo, com outros significados e objetivos. Vemos isso o tempo todo e acabamos não nos dando conta, afinal, pelo menos uma vez você passou por um lugar e se deu conta que uma antiga construção já não estava mais lá, e sim algo completamente diferente. Se por um lado vemos moda nas construções, onde numa época se fixam pedras na parede, noutra o uso de cobogós e brises ao exagero, até as calhas escondidas e os gesos no teto das casas, tudo isto carrega significado, quer dizer alguma coisa, não fosse assim, da onde a maçante presença do “eme” amarelo daquela cadeida de fast-food? Ou o que dizer das novas assembleias e templos de Salomão? Não podemos esquecer dos condomínios e dos shopping centers, que parecem todos feitos pela mesma pessoa, já que seu desenho pouco muda. Para completar temos as construtoras que fazem questão de cunhar sua marca em suas construções, pois assim vendem algo mais do que apartamentos e salas comerciais.
Tal qual uma orquestra, devemos perceber na pluralidade de sons qual é o significado, o que se está querendo dizer em meio a essa polifonia. É um livro chave para percebemos no caos cotidiano do urbano um sentido. Desta forma podemos ler o urbano, enxergar suas nuances, suas frestas e até suas fachadas. Pensar o plural, não quer dizer aceitar um vazio de significado, eles estão ali, em disputa, em hibridização, em evidência ou em esquecimento.

domingo, 14 de junho de 2015

Neuromancer - William Gibson


Neuromancer é um daqueles livros terríveis de se ler, não pela experiência da leitura, mas sim pela dificuldade em encontrar algo próximo a obra depois de lê-la. Apesar do livro ser relativamente famoso e importante, tanto por carregar uma ficção científica diferente, quanto por constituir a base de tanta coisa genial como Blade Runner ou Matrix, muitas pessoas discutem porque até hoje não houve uma adaptação para o cinema desta obra. Realmente é um mistério.
O futuro desta ficção é um daqueles futuros desapaixonantes, marcados pelos anos 1980 (o livro é de 1984), onde a crença numa futura hegemonia japonesa era bem real e a aceitação da continuidade da União Soviética algo bem sólido. Gibson porém é um sujeito atento, e sabe ler mais do que as letras grandes. A china está ali, produzindo um vírus potentíssimo, o Brasil é um lugar importante, apesar de secundário sua potência econômica não pode ser ignorada e, os rastafáris coroam a obra com sua mística. Junto a isso temos o mercado de hackers claramente pautado no tráfico de informações e financiado pelo setor privado, apesar de termos os sujeitos institucionalizados, seja pela polícia Turner, ou pelas forças armadas. No meio disto temos também alguns desgarrados, que hackeiam por outros motivos mais variáveis. O que a meu ver, condiz em muito com a realidade. Fica a brecha para imaginar como se constitui este universo desconhecido dos hackers.
A história em si, é apenas divertida, seu desenrolar não traz grandes lições ou ensinamentos sobre a vida, isso contudo não lhe impede de transbordar possibilidades para o pensamento. É nos detalhes que cercam a trama, que as coisas se mostram interessantes. Um dos pontos seria a sua estética, muito bem marcada por um mundo subterrâneo, escondido, que mostra coisas para além da superfície, e sem dúvidas isto influenciou desde as obras citadas acima, como talvez até mesmo a série 2099 da Marvel ou quem sabe até mesmo Akira, o anime de 1988. Afinal, Gibson é frequentemente apontado como o pai do termo Cyberpunk. Junto a tudo isso, temos o constante uso de drogas, seja para aguentar as pressões do serviço (durante ou após ele), quanto para desenvolver um estado contemplativo, que seria o caso dos rastafáris. Dando uma abordagem mais realista, pois também não esconde todos os problemas advindos dai.
Além disso, a dominação total de elementos construídos pelo Homem dominarem a totalidade da dimensão, sendo uma planta ou carne “de verdade” um luxo, nos ajuda a pensar a proporção que desejamos tomar. O Sprawl é uma megalópole do tamanho de um país, e o que fazemos para evitar que isto não aconteça? Por fim, o peso real do mundo virtual, que nesta história pode ser até mesmo a causa mortis durante seu uso, é uma referência clara a interconexão das ações, por mais “virtuais” que elas aparentem, ou apenas uma forma de tornar a história mais interessante? Confesso que em alguns momentos, pode não haver muita distinção entre os dois mundos.

quarta-feira, 13 de maio de 2015

Frank - Lenny Abrahamson (dir.)


Frank é um daqueles filmes divertidos e originais como raramente temos oportunidade de assistir. Recheado de referências num mar sem fim sobre a música pop, o desdobramento da história é muito sólido e importante. Basicamente temos a história de um sujeito em busca de sua glória naquilo que convencionou-se chamar de rock'n'roll. A todo custo a fama é almejada, e a esperança é constante de que, em algum momento a genialidade adormecida irá despertar e tudo se resolverá num passe de mágica.
O bacana do filme é simplesmente retratar como o mundo da música funciona. Sua produção é efêmera, lançando um caminhão de bandas e artistas todo ano, sendo estes mesmos sujeitos engolidos pelo ostracismo de forma tão discreta e inexplicável quanto surgiram. Da mesma forma existe todo um filtro de como as bandas devem soar, diretrizes sem fim, numa complicada e nublada relação entre público e “empresários” – incluo aqui rádios, gravadoras, festivais e todos os afins que não pegam em instrumentos e/ou sobem no palco. Desta forma, o que levaria pessoas a dedicaram tanto de sua vida, em algo que a chance de obter êxito seria tão pequena? As promessas de fama são maravilhosas, ainda mais se levarmos em conta que vivemos num mundo que lhe cobra a sede por sempre mais (e lhe promete riqueza caso você se esforce direitinho).
Se você não viu o filme, talvez valha a pena parar de ler agora.
O que se passa é que nada disso acontece. A história toma esta direção até quase perto do final. Temos uma banda com sua sonoridade ímpar e um cantor de muita personalidade e qualidade musical. Se estes elementos não estivessem postos, talvez arriscar uma herança de família não valesse nada a pena. O fracasso da empreitada da fama inicia no mesmo momento em que esta pérola surge no horizonte. Vamos perceber no fim que, as coisas não são tão inevitáveis quanto sua explicação mais comum pode sugerir.
Parece que a mensagem principal do filme é que, o grande problema para esta “morte” do rock'n'roll, é justamente o foco de boa parte das pessoas consumidoras e produtoras deste nicho, em estarem muito mais preocupadas com outras coisas secundárias em relação a música. A fama e o visual podem ser elencados como os principais. A discussão certamente não é de hoje, mas é vital dizer que o que importa não está nos holofotes, e que talvez, se percebermos isto, as coisas possam se tornar mais interessantes. Nada disto passa de uma saudade de tempos não vividos, onde a distância do tempo cria um brilho que na verdade jamais existiu.

segunda-feira, 11 de maio de 2015

Teorias da cidade - Bárbara Freitag

     O livro de Bárbara Freitag é basicamente uma passagem geral pelas principais questões teóricas já produzidos sobre a cidade. Dividindo em três escolas, somos apresentados de maneira mais sistemática aos campos teóricos alemão, francês e inglês (RU e EUA incluídos de maneira distinta). De fato, não caracterizar estes como os campos mais influentes, seria descabido, e desta forma a abordagem sobre o Brasil fica reservada para o final.
     Acaba se revelando uma boa obra para por em diálogo o leitor e as teorias urbanas, pois condensa e apresenta os contornos das linhas teóricas mais influentes. Mesmo não se aprofundando em nenhum elemento específico para além de apresentar estes autores e seu pensamento, podemos deixar de lado a prática acadêmica da crítica e observar os pontos úteis em tal obra. Sobremaneira acaba se mostrado uma boa ferramenta para imaginar pontos de partida, assim como condensar alguns elementos tão densos quanto a teoria sobre as cidades e o próprio urbano.
     Me despertou atenção a escola anglo-saxã, que eu confesso sempre ignorei por puro capricho, e como ela se constituiu como uma das mais marcantes no campo prático das cidades, e aqui me refiro a sua construção física. Salvo exceções, como é o caso do gigante Le Corbusier, a escola anglo-saxã acabou ganhando mais espaço e eficiência no momento de articular teoria e prática (algo não dissociado, mas nem por isso menos conflituoso). Não podemos ignorar elementos como o fato de ter sido Thomas Morrus quem cunhou o termo Utopia, e ao mesmo tempo ser entre os anglo-saxões que teremos o conceito de cidade jardim sendo moldado e construído. Essa atenção deve ser observada com a ressalva de meu desconhecimento.
     De qualquer forma o ponto mais interessante e produtivo é a articulação feita ao final do livro, em que as recepções teóricas são trabalhadas no contexto brasileiro. Podemos afirmar que de maneira geral, o campo teórico nacional é baseado no arcabouço teórico estrangeiro, sem contudo deixar de colocar os elementos e especificidades nacionais em pauta, criando desta forma um pensamento original – problematizado pela autora a partir da perspectiva apresentada de Ronald Daus. Vale muito a pena estes dois últimos capítulos, pela clara articulação com o conteúdo anterior, tão distante por sua teoria e geografia de origem (Europa), com a realidade brasileira e latino-americana. Podemos dizer que a obra se encerra no momento certo, pois estes dois últimos capítulos são o ponto de partida para o atual, e eles permanecem inconclusos e não-superados.
     Aponto um certo desconhecimento de teorias mais recentes baseados na obra de Deleuze-Guatarri, e sua perspectiva rizomática, já bem digeridos e pensados para o contexto brasileiro por Paola Berenstein Jacques em a “estética da ginga”, publicado poucos anos antes da obra de Freitag. E confesso que não sei se ter ignorado tal perspectiva sobre o estudo das cidades ocorreu por desconhecimento, discordância ou sou eu que tenho uma visão entusiasmada sobre esta questão.

quarta-feira, 15 de abril de 2015

É isto um Homem? - Primo Levi


O problema eterno de se falar da experiência, é que no final, por mais que se diga, se explique, mesmo com toda a riqueza de detalhes, nunca daremos conta dela. A experiência só pode ser sentida quando experimentada, e muitas delas nós não queremos experimentar, mas ao mesmo tempo não podemos ignorar, pois foram fundamentais para definir algumas diretrizes de um tempo. A Segunda Guerra foi isso para o século XX, e dentro dela não podemos esquecer o horror dos campos de concentração. Devido a sua eficiência, os sobreviventes não foram muitos, e é sempre difícil falar de coisas desagradáveis. Primo Levi consegue falar da experiência em um campo de concentração de forma magistral. Você simplesmente lê o livro de uma maneira envolvente.
O primeira coisa que nos espanta é o sofrimento por fome. A comida nunca é suficiente, e com o tempo vai se transformando numa questão de sobrevivência. Dado óbvio, mas esquecido na cotidianidade das refeições diárias. Se não olharmos para o relato de Levi, teremos alguma dificuldade em entender a tolerância com que uma nação teve com o extermínio de um grande número de pessoas. A obra deixa claro como o tempo todo se está tentando destruir um Homem, travesti-lo de algo abaixo do humano para autorizar seu extermínio, tirar suas condições de humanidade. Esta era a maior produção dos campos.
Vale ressaltar que os campos não foram exclusivos dos alemães ou soviéticos, já existiam antes, seja na Namíbia (África Ocidental Alemã), na guerra contra os bôers ou na Rússia czarista. Seu rascunho já estava lá. Pode ser dolorido aceitar que o campo de concentração está ligado ao desejo moderno de redesenhar a sociedade. É com a modernidade que o Homem vai se ver como um condutor do tempo. A possibilidade de construir a sociedade desejada se coloca. O nazismo também pretendia isso, apesar de retrógrado e conservador, pretendia também redesenhar a sociedade, e era através do extermínio que a perfeição seria alcançada. Para nos ajudar sobre a dimensão dos campos de concentração, se fala que algo em torno de 90% dos falantes de ídiche, até então língua dominante entre os judeus, foram mortos em campos de concentração. Não só judeus foram mortos, e o livro nos mostra bem, temos ciganos, comunistas, presos políticos de maneira geral, sabemos também dos homossexuais e testemunhas de jeová. Muita gente estava na mira dos nazistas. Não seria exagero dizer que o desejo era extirpar o “outro”, o diferente, para eliminar qualquer tipo de tensão.
Cabe observar aqui os debates em torno do número de mortos em campos de concentração nazista. De fato sabemos que o número está na casa dos milhões, mas precisar isto pouco diminui o desejo e os efeitos da morte.
O relato é vivo, podemos sentir a intensidade com que a morte ronda, e de como se batalha pela vida. Curioso como a desobediência era o único caminho para sobreviver, mas esta desobediência deveria ocorrer na medida certa, pois caso fosse muito drástica, havia um local certo para realizar o enforcamento. Também podemos pensar nas resistências possíveis, como a explosão realizada num dos fornos em Auschwitz, sobre como as resistências que não partiam dos EUA e da URSS foram apagadas e deixadas no esquecimento, dando a impressão de que estes seriam os dois grandes salvadores – imagem muito ligada a posterior batalha da Guerra Fria.
Lendo o livro podemos entender a importância de cita-lo numa obra como Invasões Bárbaras, um filme que problematiza o fim de um século mal acabado, tanto no sentido de sua recenticidade quanto de suas questões, ainda pulsantes. Podemos marcar a Segunda Guerra como um evento chave para entender nossa temporalidade, talvez por isso um fascínio tão grande para além das pessoas que compõem os círculos historiográficos.

quinta-feira, 9 de abril de 2015

Interstellar - Christopher Nolan (dir.)

     Atrasado e sem pretensão séria de questionar o chato Oscar®. Admito, antes de tudo, que há alguma renovação acontecendo em Hollywood, afinal o negócio precisa continuar e para que isto ocorra, se adaptar é o mais usual. Mas, mesmo assim, boa parte dos filmes que ganharam prêmios só foram conhecidos pelo grande público após as indicações e prêmios recebidos. Interestellar já parece um caso distinto.
     Seu caráter de ficção-científica super bem produzida lhe garantiu um bom espaço nas salas de exibição, e não duvido foi assistido por muita gente. Filme espetacular, com atores bonitinhos e famosos, é verdade, mas uma das coisas mais importantes não pode ficar de lado: seu roteiro. Verdade seja dita, dos filmes que assisti, Interestellar foi o que conseguiu produzir o maior estranhamento e por isso foi o filme que mais gerou reflexão. Você pode citar Boyhood e os desafios cotidianos, mas ele não parece ir muito além da dificuldade em ser um indivíduo em constante transformação (sem falar que talvez leva muito tempo para mostrar isso, debates ao longo do filme não cairiam mal).
     A ficção-científica deve servir para pensar novas questões, já nos advertia Stanislaw Lem, ou vira mero exótico ou propaganda.
     Temos algum mérito pela questão da terra passar por um cataclismo ambiental, e isto se dar no campo da agricultura, afinal, encontrar qualquer alimento que não seja transgênico é um desafio, e pagá-lo seria um segundo. É justamente o milho um dos alimentos escolhidos, é justamente o milho que tem um dos códigos genéticos mais distorcidos. Mesmo que você observe que no filme este seria o único alimento a sobreviver, sua ruína está anunciada, e o que parece ocorrer é um movimento incompreensível. Ninguém sabe ao certo aonde isto vai dar. Junto com o milho temos as tempestades de poeira, evento que já ocorreu nos EUA durante a década de 1930, claramente por depredação do meio-ambiente e que exerce suas marcas até hoje. Temos um questionamento sobre como ajustar nossa produção de forma a sobrevivermos decentemente. Vale lembrar que a produção de alimentos é o setor mais agressivo ao meio-ambiente, seja pelo transporte, uso da terra e até mesmo pelos fertilizantes. Quando uma fábrica de fertilizantes causa problemas, é bom não estar perto. Isso que nem entramos no tabu do consumo de carne. Seguiremos.
     Também temos a escola, que revela seu caráter de produção de mão de obra, ao direcionar claramente funções para seus alunos antes mesmo que estes tenham demonstrado alguma clarividência sobre. Podemos ver também, na figura paterna e nos desafios feitos entre ele e seus filhos, a importância do conhecimento para além de algo prático e direcionado, se não fosse este olhar interessado, a comunicação com o “fantasma” jamais ocorreria e a trama não poderia se desenvolver sem este detalhe minúsculo. Confesso que me espanto com a tomada cada vez mais funcionalista e voltada para o mercado de trabalho nas discussões sobre educação, tudo isto numa sintonia ignorada com as reclamações de falta de inovação e preparo desses trabalhadores. Um salário final do mês, não é motivação suficiente. Percebemos algum questionamento sobre isso.
     O ponto central contudo é o tempo. Curioso como todos estamos inseridos nele, mas pouco pensamos sobre tal elemento ao longo de nossa vida. E normalmente, nas raras vezes que nos voltamos para o senhor do universo, enxergá-lo para além da mecânica do relógio parece um exercício mais penoso do que nadar contra a corrente. O fato de não estarmos limitados pelo tridimensional “real” já causa espanto. Distorções na rigidez cartesiana, tão clara em nossa forma de pensar, causa estranheza. Dobrar o espaço? Meu Deus, pode isso? Pode, afinal, ele é infinito e não tem forma definida. Imaginar mais de uma temporalidade é um desafio, especialmente quando historiadores pensam o passado. Bem sabemos que Benjamin já coloca esta simultaneidade e continuidade entre os tempos, mas lidar com isto é sempre um espanto. O Filme consegue colocar esta discussão de forma muito clara ao demonstrar que o tempo passa de forma diferente em cada lugar, as vezes lida com três tempos distintos. As ações desenvolvidas em cada plano temporal são reveladas independentemente, porém se mostram interligadas e num descompasso rítmico – os tempos são diferentes, mas um ritmo consegue se alcançado. Para pensarmos o tempo, é fundamental vê-lo além da mecânica, pois ele estaria além das três dimensões percebidas por nós.
     Recomendo o filme em especial para historiadores, estes sujeitos que pensam o passado e suas implicações no continuum temporal. Creio ser bem recebido por todos o reconhecimento de uma ligação entre o presente vivido e o passado que nos cerca, mas esta afirmação não facilita em nada reconhecer os pontos relacionais entre temporalidades tão distintas. Bem sabemos que o simples fato de dois eventos terem ocorrido numa mesma mecânica temporal (data, hora), não o explicam. Precisamos enxergar além da mecânica, do cartesiano.
     De fato é um filme que não responde as questões colocadas além da trama do enredo, mas negar que ele nos leva a refletir, seria desmerecer uma função tão valorosa e aparentemente não suprida em outros filmes tão premiados.