Harvey Pekar, imagino eu, vai trazer pela primeira vez o homem
ordinário para os quadrinhos. Não que ele já não estivesse lá,
seja no jornalista nerdzão que na verdade é um extraterrestre
excepcional, ou no fotografo freelance
picado por uma aranha ou alguém que sofreu mutação genética, mas
os personagens de Pekar tem desafios diferentes do de vilões
malvados, eles precisam de paciência para enfrentar a fila do
mercado, grana para pagar o aluguel ou sorte no amor. Não há uma
tentativa de suprir nossa insuficiência de vida num personagem
semelhante a nós, porém dotado de uma grande virtude oculta, ele é
ordinário e nada mais, tal qual somos a maior parte do tempo.
Talvez a grande distinção do
romance em relação a outras abordagens literárias seja a
emergência do indivíduo, não raro algumas prosas são em primeira
pessoa (como Werther
do Goethe), deixando bem clara essa narração do “eu”. Por
alguma razão o romance se catalisa com a modernidade, não antes,
justamente quando uma consciência de si enquanto indivíduo surge. O
papel social não é mais o de alguém destinado a exercer alguma
pretensão divina, como louvar tal deus ou servir a tal rei, mas sim
a de que “eu” sou um indivíduo. Somos egocêntricos afinal.
Porém esta noção se passa por uma
metáfora geográfica, onde este ser individual precisa saber onde
está para se mover melhor, por isso algumas necessidades surgem,
como uma constante afirmação de si, que pode ser vista nas
conversas quando discutimos aquilo que é “bom gosto” (boa
música, boa comida, bons filmes...) de forma geral, chegando algumas
vezes a casos extremos de nacionalismos e outros pre-conceitos
fascistas. Da mesma forma como um questionamento semelhante ao de
Ráskolnikov, em Crime e Castigo,
que está preocupado com sua extraordinariedade ou mediocridade. Ele
se localiza enquanto homem ordinário, comum, padrão, e entende que
coisas precisam ser feitas para superar isso, dai seu desejo
assassino ser em realidade uma vontade de superação de si.
Mas o jogo correu bastante desde os
séculos XVII e XVIII, nossos desafios não são mais um Czar ou um
amor impossível, apesar de serem questões semelhantes, nossos
desafios são o cotidiano, de forma muita mais nítida do que antes.
Há uma ascensão do cotidiano, ele vem se mostrando cada vez mais um
lugar de combate, havendo assim uma necessidade de superar o
cotidiano. E utilizamos pra isso ferramentas, que passam desde a
música e outras artes, até mesmo passando por aportes teóricos com
titulação simbólica cultural mais rebuscados1.
É deste homem cotidiano que fala Pekar, sujeito fora dos grandes
centros, neurótico, cansado, incompreendido, comum e ordinário, até
demais. E é no mesmo cotidiano, que faz dele um sujeito tão
medíocre, que se busca romper tal barreira, superando-se a si mesmo
– de alguma forma – como escrever quadrinhos ou blogues.
1Como
citar autores de prestígio acadêmico em notas de rodapé para dar
legitimidade ao discurso feito e justificar a posição social do
discursador, transformando assim a fala em algo merecido de atenção
e autenticidade. Para mais detalhes ver: BOURDIEU, Pierre. A
economia das trocas linguisticas:
o que falar quer dizer. São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo, 1996.
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