sexta-feira, 25 de agosto de 2017

Formação do Brasil contemporâneo - Caio Prado Júnior


Caio Prado Júnior é daqueles clássicos que quando lemos, nos perguntamos como pôde passar tanto tempo sem o ter lido? Formação do Brasil contemporâneo, lançado 75 anos atrás, mais precisamente em 1942, continua tratando de um Brasil atual. Seu recorte focado no Brasil colonial e seu processo de colonização. A obra é famosa por apresentar os famosos ciclos econômicos. Por entender o período colonial enquanto momento de gênese do Brasil, compondo o período mais extenso da história do país com aproximadamente 300 anos, é neste período que podemos perceber elementos de continuidade desde longa data. Basicamente, o elemento que carregamos desde o período colonial é a extração de recursos primários para exportação as nações centrais. O modelo de empreendimento está rascunhado nas grandes propriedades e no emprego de mão de obra barata (escrava, semi-escrava ou quase isso), acompanhado de baixa mecanização (braçal), pouca mobilidade social (sociedade escravocrata), baixo dinamismo (monocultura), altos lucros e a inventividade (tecnologia) mais erma possível.
A partir destas características gerais, os ciclos se desenvolvem com suas peculiaridades. Podemos falar de três grandes ciclos: a cana-de-açúcar, o ouro e o café, que apesar de ter seu momento de glória apenas após a independência, mais precisamente na segunda metade do XIX, o assunto é ensaiado por Caio Prado Júnior, como também é um ciclo com seus primeiros passos no período colonial. Por se tratar de uma economia voltada para exportação aos mercados das economias centrais (Europa ocidental), este será um dos elementos que favoreceram o povoamento restrito ao litoral, mantendo os centros de produção o mais próximo possível dos portos e desconectados entre si. Este modelo latifundiário e monocultor tornava as condições de trabalho extremamente pesadas e desagradáveis, recorrendo a mão de obra escrava, tanto indígena quando africana. Os indígenas foram escravizados das formas mais distintas, e seu emprego entrou em declínio conforme o número deles diminuía – epidemias e serviço pesado associados a péssimas condições de trabalho favorecem o extermínio de populações. Como era utilizada mão de obra escrava, e por isso barata, a preocupação com o desenvolvimento de novas técnicas era nulo e até mesmo não incentivado, situação que piorou após a independência das 13 colônias, gerando o entendimento de que o desenvolvimento de manufaturas favoreciam a busca por independência.
Por serem latifúndios monocultores voltados para altas margens de lucro, as crises de escassez de alimentos eram constantes, dado que os fazendeiros não viam vantagem em ocupar terreno plantando alimentos como mandioca ou milho, quando a venda de açúcar ou a extração d'ouro se mostravam mais rentáveis, possibilitando maior lucro ao comprar esses alimentos em vez de plantar. A crise de alimentos era constante, em regiões como em Pernambuco, onde a geografia menos acidentada favorecia a extensão dos latifúndios. a situação era mais grave. Enquanto no Rio de janeiro mais acidentado, provendo pequenos espaços menos favoráveis ao latifúndio monocultor, as pequenas e médias propriedades se concentravam na produção de alimentos básicos como: milho, mandioca e feijão. A solução encontrada para produção de alimentos sem atrapalhar a monocultura foi a criação de gado. Criado solto após as regiões monocultoras, na hinterland, se alimentava do que era oferecido pela natureza sob a vigilância de alguns vaqueiros, tornando sua manutenção barata. Outra vantagem é que o gado se transporta até os centros de abate e consumo, também barateando seu transporte.
Assim sendo, temos retratado a pauta da economia brasileira a partir de sua gênese colonial, período mais extenso de nossa história, e por isso nos legando os traços de continuidade mais rígidos, apesar de rupturas significativas. Mesmo com todas as transformações ocorridas desde a independência ou 1942 (ano de publicação da obra), continua complicado sob uma análise mais abrangente do Brasil, não perceber a dependência econômica na extração de commodities para a venda no mercado externo. Bem verdade que, algum maior grau de manufatura se apresenta, assim como não há a dependência de um único setor como foi outrora em relação ao café, e as exportações, ainda que majoritariamente para os países centrais, também encontram espaço em outros mercados. Mas, nossa mão de obra continua barata, os latifúndios ainda predominam, o grau de manufatura é limitado o que não só agrega pouco valor ao produto, como dificulta a importante mobilidade social, as patentes ainda são poucas e algo do mais significativo, a maior parcela da população brasileira continua morando em até 100Km de distância do mar. Transformar esta estrutura colonial que carregamos talvez seja um dos maiores desafios.


sábado, 10 de junho de 2017

O iluminismo e os reis filósofos - Luiz Roberto Salinas Fortes

 
Livro composto no melhor estilo “primeiros passos” faz parte de uma coleção voltada ao debate histórico. O caso aqui é do Iluminismo, e através de um curioso baralho de cartas onde as realezas são substituídas por filósofos, o autor tece uma relação entre estes pensadores clássicos do Iluminismo, sobretudo os franceses, e os reis déspotas esclarecidos.
Apesar de não tratar especificamente desta questão, estamos abordando um século XVIII em que a França conseguiu galgar o posto de principal nação. Ultrapassando as potências ibéricas, é a França (com a Inglaterra muito próxima) que ocupa a centralidade do mundo ocidental, e junto com sua etiqueta, exércitos e comerciantes vão também as ideias. Em superação ao Ancien Régime, será necessário romper com seus preceitos e dogmas. Estes se organizavam fundamentalmente em torno da religião, e a justificativa do rei e seu governo estava num direito divino explicado através de uma complexa escolástica. O movimento que nos interessa aqui é, o rei deixar de ser uma figura divina para se tornar uma figura de razão, e, é esta última que vai galgar o centro de tomadas de decisão e raciocínio que culminam na Revolução Francesa e fundamentam a modernidade. O processo histórico de que tratamos é extenso, muitos colocam a tomada de Constantinopla pelos Turcos, mas seguramente o evento das grandes navegações dialoga melhor com a nova dinâmica de pensamento que começa a se constituir: a modernidade.
É um processo que propicia a emergência de figuras até então excluídas, pessoas de certa riqueza, mas não necessariamente com título de nobreza, os burgueses. Estes colocam a razão, o indivíduo, a liberdade e a propriedade como os valores fundamentais para a constituição de uma sociedade. Isto estava em distinção com a soberania incontestável do rei e da Igreja, dois organismos que não raro se confundiam, e consequentemente da honra em obedecer e servir ao rei – o que por extensão era servir e obedecer aos pressupostos divinos. Mesmo que este Ancien Régime não fosse tão rígido como o delineamos agora, é notável como suas estruturas começam a ruir ao longo do século XVIII e novas questões são colocadas.
O Iluminismo não se entendia como um movimento claro e coeso, a briga e discórdia entre suas principais figuras era recorrente. O que ocorre é uma certa novidade, onde figuras antes impossibilitadas de alguma participação política, começam a fazer seu espaço. São os burgueses, pois em sua maioria não viviam do trabalho bruto dos camponeses e não eram nobres. Em sua maioria, estavam mais próximos do que hoje é chamado de profissionais liberais. A novidade está em, ao mesmo tempo que muitos destes pensadores eram presos ou perseguidos por seus déspotas em seus respectivos países, não raro encontravam algum apoio e abrigo no seio de uma corte estrangeira. Estes déspotas estavam, em maior ou menor grau, sintonizados com os debates de seu tempo. Verdade que poucos eram um Frederico II da Prússia, mas também é verdade que ele não era exceção. Desta forma muitos destes Iluministas acabaram trabalhando ou aconselhando muitos destes reis, que se mostravam de fato interessados pelas questões postas pelo Iluminismo. Sua ferocidade com os detratores ao mesmo tempo que demonstravam interesse pelas novas obras lhe dá o título de déspotas esclarecidos.
O autor em sua conclusão é algo pessimista e corre um sério risco de concluir sua análise com algo de anacronismo ao afirmar que pouco mudou. As mudanças são significativas, e não por acaso temos uma Revolução encerrando este século que foi o XVIII. Ao longo do próprio processo uma integração e comunicação entre os diferentes sujeitos de diferentes nações, demonstram uma transformação significativa em relação a um mundo antes em menor diálogo. Isto é possível pelas questões técnicas da época, como melhoria e expansão da rede de estradas e carruagens bem como da navegação, e fundamentalmente do impulso de diálogo com outros povos e outros sujeitos. Não podemos ignorar que ao termos um rei protegendo alguém perseguido por outro rei, o movimento de constituição de Estados soberanos se faz mais claro e nos auxilia no entendimento da consolidação dos Estados nacionais no pós Revolução Francesa. A simples questão do surgimento do Estado moderno e de sua transformação em um aparelho que deve servir ao bem estar do rei para servir o bem estar da nação, é algo notável. Há transformações significativas sim, apesar do justo pessimismo do autor em sua conclusão, ao notar que algumas questões ainda se arrastam. E nisto curiosamente está o mérito do livro, ele demonstra o processo de tensão em que esta transformação histórica ocorreu. Em extenso período, os pensadores Iluministas e os déspotas conviveram em constante negociação de seus atritos e concordâncias, porém em dado momento a dialética alcançou seu limite de contradições e o constante choque e fricção gerou um evento explosivo como a Revolução Francesa. 


domingo, 4 de junho de 2017

Trapaça - Marcelo Labes

 
Quando falamos uma palavra, mais do que desejar transmitir um significado a invocamos pedindo para que se faça presente. Falar é mais do que mero jogo de significados. Falar é algo vital para o ser humano. É na fala que nos relacionamos com a língua. E a língua fica na boca. Entendendo isto, podemos reconhecer o grande mérito da poesia: evocar uma palavra como se fosse a primeira vez.
O maravilhoso da poesia é seu caráter de oralidade, é por isso que através dela nossa relação com a língua mais se desperta. Ler poesia traduzida é um sacrilégio. Não se traduz poesia da mesma forma que não se traduz nome próprio. O próprio não tem comparação, muito menos tradução. Desta forma, a poesia carrega uma língua inteira em seus versos e, do poeta, se espera que consiga fazer bom uso da língua colocando seus versos em palavras familiares que soem como se nunca escutadas antes.
A forma mais primitiva de literatura é, sem margem para dúvidas, a mais complexa. Inventamos a poesia para decorar, como já não precisamos mais decorar desde a popularização do papel e do livro, como fazer poesia? É disto que trata Trapaça, dos puxões de tapete e rasteiras inesperadas que a vida nos proporciona. Cabe a um poeta hoje se perguntar, por quê escrever versos quando eles não são mais necessários para a memória? Ao revés de previsões alarmistas, lemos e escrevemos em intensidade não só cada vez maior, como também jamais imaginada. Nisto tudo como fica a oralidade, a poesia e a língua? Como dizer algo que soe novidade, utilizando palavras gastas?
Arremessados num mundo sob o qual não temos controle, uma infinidade de variáveis se põem em objetivos que em dado momento eram claros. O poema aqui não é sobre aquilo que não existe, ou seja, algum ser inimaginável e inalcançável. Não é uma ode a algum sujeito mais indivíduo que os outros. Nem sobre uma paixão mais ardente que as outras. Muito menos sobre o sujeito de classe média que carrega as angústias do mundo inteiro dentro de si. Nada disto é real o suficiente para nos tocar, e assim as palavras soam vazias, gastas e repetidas. Os versos tratam da pessoa inserida no limite entre a civilização e a barbárie, do banho de rio e da fumaça do ônibus, da solidão e da tevê.
Num tempo em que não se precisa mais decorar, a poesia deve ser outra. Manter seu esforço de ser a palavra dita pela primeira vez, mesmo que ela seja familiar. Num tempo em que se escreve e lê cada vez mais, a língua continua. Falamos, berramos. Isto não vai deixar de acontecer. Nos relacionamos com a língua, e ela a sua maneira se relaciona com a gente, nos produzindo uma forma de pensar e ver o mundo. Se a língua ainda existe, a poesia também vai existir, cabe a ela enamorar-se de pessoas que compreendam seu tempo e sua língua. E sobre isso, é muito bom saber que tem gente produzindo coisas assim em português.


quarta-feira, 10 de maio de 2017

Ascenção e declínio do Estado - Martin van Creveld


Reinhart Koselleck colocava que quanto mais precisa uma previsão sobre o futuro, maior a chance dela se revelar incorreta. Quando estudamos o passado nos deparamos com a possibilidade de coisas que para nós são um claro e completo absurdo, mas acabavam sendo algo tolerável em seu tempo. Cada tempo carrega suas próprias características, seu próprio espírito se considerar mais adequado. Temos no momento atual uma sensação de deriva maior do que em outros presentes recentes, e o mais interessante é que uma série de previsões certeiras sobre o futuro não estão se concretizando, mas parecem tomar um rumo contrário. É verdade que, para além do binarismo entre esquerda e direita colocados de forma mais urgente nas eleições dos EUA que elegeram Trump, no Brexit e agora nas eleições francesas, observamos a ressonância que a proposta de projetos nacionais conseguem. Isto, num momento que cinco anos atrás seria inimaginável.
Da mesma forma, temos a questão da Síria, muito instrutiva após observarmos o que se sucedeu em outros países árabes, em especial o Iraque e a Líbia. É notável como está cada vez mais urgente retomarmos o papel e a função do Estado. Este, ao contrário de previsões de sua dissolução e fraqueza cada vez maior durante a década de 1990, das quais van Creveld neste livro faz significativo eco, se mostram apressadas e seduzidas por acontecimentos presentes. É aqui que nos damos conta de que a longa duração não se trata simplesmente de uma narrativa em extenso volume de anos. Se o Estado nos causou inquestionáveis problemas ao longo do século XX, momento em que ele alcançou níveis até então nunca vistos, desde o desleixo para a questão do Estado após a queda do muro de Berlim, e uma entrega cada vez maior de ações públicas para a iniciativa privada, os problemas não se resolveram – quando não se multiplicaram e aumentaram de gravidade.
Não podemos falar de Estado antes da modernidade. Em resumo, o Estado se constituí como um aparelho de governo impessoal e independente de algum indivíduo. Muda-se o governante, mas as instituições, órgãos e departamentos públicos continuam suas atividades sem maiores interrupções. É algo impessoal, e nisto podemos compreender porque a burocracia é tantas vezes injusta. Da mesma forma que não depende de um indivíduo governante específico, também não busca distinguir os sujeitos em sua individualidade. É apenas no período um pouco precedente a Revolução Francesa que isto ocorre. É justamente com Luís XIV, famoso por ter declarado ser ele próprio o Estado, que isentou tal aparelho de pessoalidade. Outra característica interessante está no fato de que o Estado está diretamente atrelado a forças militares e policiais regulares. Sem isto não há Estado. De fato, aplicar a severidade da coleta regular de impostos, bem como realizar medidas obrigatórias (vide Revolta da Vacina), invariavelmente exigem o uso da força. É o chamado monopólio da violência. Desta forma, o único indivíduo reconhecido em reais níveis de igualdade por um Estado é um outro semelhante. Os Estados só dialogam entre si, ao resto sua razão imperativa e impessoal.
Pode-se considerar exagerada a atenção e importância que van Creveld dá a questão militar, ainda mais quando temos em conta ser esta sua especialização. Mas sua observação de que os Estados alcançaram sua maior capacidade de interferir na totalidade de uma sociedade no período das duas guerras mundiais, é lúcida. Justificado por sua orientação baseada na razão, nestes momentos críticos o Estado interviu em tudo que for possível para um esforço comum: a guerra. Junto com esta dedicação comum da população, que ocorreu na lei ou na marra, ocorreu uma significativa ampliação de infra-estrutura e bem-estar social. Esta ampliação de infra-estrutura e bem-estar social prevaleceu em expansão durante o pós-guerra até a década de 1970 e suas crises. Também é no pós-guerra que o modelo do Estado Nacional aparecerá como meta em todo o globo, em particular nas lutas de libertação na Ásia e na África.
Se com os desafios postos em cada vez maior grau desde a década de 1970, onde van Creveld aponta que o fracasso do Estado de bem-estar social foi seu sucesso, tornando cada vez mais caro manter sua estrutura, culminando na era neoliberal iniciada em nível global com a eleição de Tachter e Reagan e que encontrou sua urgente necessidade de revisão com a crise de 2008, repensar o papel do Estado se mostra algo fundamental. E, se é bem verdade que o Estado foi responsável por atrocidades, desde a rigidez do socialismo real até as ditaduras latino-americanas anti-comunistas, com seu ápice de neoliberalismo na década de 1990 e seu último espasmo em 2008, rever o papel e os usos desde que é até agora o mais refinando aparelho de governo e organização social que conhecemos se mostra uma pauta vital. Interrogar sobre o que temos na ausência do Estado é válido. Creio que a resposta mais imediata, é a de que ainda precisamos dele, e nada indica que seu tamanho diminuiu, afinal, como medir algo tão abstrato?

sexta-feira, 5 de maio de 2017

A Revolução Francesa explicada à minha neta - Michel Vovelle


Um dos maiores especialistas em Revolução Francesa desce de sua cadeira de grande historiador francês para, em sua privacidade e humanidade inesperada, conversar e explicar a Revolução Francesa para sua neta. O livro segue na linha de um diálogo com sua neta de 14 anos e que ainda não estudou o assunto na escola. O bom deste formato está nas interrupções feitas ao longo da explicação de Vovelle, tornando o entendimento menos rígido e fechado, obrigando o autor a explicar e dialogar. A proposta da obra é a de produzir algo como uma haute vulgarisation, que é a explicação mais simples da história sem deixar de colocar sua complexidade e profundidade.
Temos ao longo da explicação do processo da Revolução Francesa uma narrativa que evita limitados juízos de valor e até mesmo uma lógica mecânica da história. As duas argumentações fundamentais colocadas neste sentido estão na dureza da tomada das decisões e da imprecisão do presente. O que não isenta os horrores cometidos, mas nos ajuda a observá-los e entende-los sem um julgamento simplesmente passional. Outro está na colocação de como a crise econômica do período auxiliou para a explosão da Revolução, mas nos lembrar que nem toda crise gera uma Revolução, afinal a cada dois ou três anos uma crise se sucede mas não necessariamente acompanhada de um processo revolucionário. Vale lembrar aqui o caso da Revolução Iraniana, que ocorreu num país que vinha crescendo economicamente até em valores per capita, e mesmo assim viu uma revolução ocorrer. É uma observação que nos evita interpretar estes complexos processos revolucionários como motivados por desencadeamentos mecânicos, previsíveis e fechados. A história é um estudo do humano, o fascinante da psiquê deste ser vivo é sua não pequena margem para a imprevisibilidade.
É um livro que pode tranquilamente ser trabalhado com estudantes da idade da neta de Vovelle em diante, e que apresenta uma leitura prazerosa. Seu destaque está na capacidade de sintetizar o assunto, não ignorar sua cronologia, o que honestamente auxilia o entendimento de um assunto histórico quando o vemos pela primeira vez, mas não se restringe ao encadeamento de fatos, trazendo questionamentos, diálogo e a história como algo em aberto. Evita também simples julgamentos de valor, ao não colocar o rei ou Robespierre como meros tiranos desvairados – e provavelmente se o fossem, é discutível até onde isto seria de fato relevante. 

terça-feira, 18 de abril de 2017

Os demônios - Fiódor Dostoievski

 
O grande feito da modernidade é colocar o ser humano como senhor de seu destino. A expressão máxima deste pensamento e ação tem seu melhor exemplo na Revolução Francesa. É neste episódio que pessoas deixam de tolerar a estrutura social em que vivem e, decidem transformá-la através de sua ação. A partir dai, a revolução enquanto meta e forma de transformar o mundo assentou seu lugar no imaginário. Levada de reboque com outros elementos da inteligência europeia, conseguiu se espalhar junto com seus impérios. A Rússia nos interessa por sua particularidade, nas bordas periféricas da Europa até hoje se encontra rodeada de perguntas sobre seu pertencimento entre a Europa e a Ásia (Ocidente e Oriente) e qual lhe define mais. Este tipo de preocupação já era recorrente nos tempos de Dostoievski.
No século XIX a Rússia czarista produziu os mais variados grupos rebeldes, desejosos de uma completa transformação da sociedade, dentre eles podemos citar: socialistas, anarquistas e niilistas. Sobre estes últimos, sua atuação foi mais constante no período da escrita de Os Demônios, e acabam sendo o grande alvo de crítica da obra. Abertamente panfletária e crítica a estes sujeitos brilhantemente retratados como provenientes de camadas médias ou altas, tendo cada qual sua ideia perfeita de uma sociedade perfeita. Temos uma clara caracterização da multiplicidade de debates e tensões do período através dos distintos personagens e sua argumentação. Desta forma, é sensato não definirmos o autor pura e simplesmente representado em algum dos personagens, Dostoievski era um sujeito completamente atento e interessado as discussões de sua época, e não deixava de abordá-las de forma crítica e até mesmo com certo sarcasmo. Todos são ridicularizados, em maior ou menor grau. Sejam eles eslavófilos, socialistas, capitalistas, liberais, conservadores, niilistas ou anarquistas. Exceto a religião ortodoxa, esta cada vez mais presente em suas obras pós cárcere, é claramente posta como o elemento mais importante para a constituição de uma sociedade decente.
A obra é uma cutucada numa questão muito cara, principalmente para as esquerdas, mas não só para elas: a revolução. Basicamente a argumentação de Dostoievski está presente desde o título da obra e na passagem bíblica que a abre, o famoso exorcismo de Jesus que transferiu os demônios para uma vara de porcos que imediatamente entrou em delírio e se atirou num barranco rumo a morte certa. Tenhamos aqui a dimensão de que uma das revistas empreendidas por Dostoievski se chamava época, que ele acompanhava atentamente os debates e leituras contemporâneos, bem como era um sujeito, que embora de província, se mostrava profundamente letrado. Por isso é possível afirmar que havia em seu pensamento uma perspectiva histórica através deste elemento da modernidade que é a consciência de viver e atuar num tempo único e na sua construção.
Revolução por revolução, ou seja, produzi-la a todo custo, é o que a obra nos adverte. A advertência é no sentido de que simplesmente produzir a ação de forte revolta e destruição da estrutura social vigente, produzirá pobreza e destruição em larga escala. É aqui que podemos lembrar que as revoluções são basicamente escritas com sangue. E mais ainda, podemos ver nos episódios mais recentes de que as promessas de revolução advindas da Primavera Árabe, pouco mais fizeram do que desestruturar aqueles países, que não tiveram ainda uma real reestruturação de sua sociedade ou qualquer transformação em escala válida. E, é aqui a questão cara para a esquerda, de se é realmente através da revolução que uma transformação social com meta de produzir um mundo mais justo e harmônico pode ocorrer.
Definitivamente uma obra intensa de Dostoievski, e que nos serve como ótimo meio de compreender o que se passava na Rússia pré-revolucionária e alguns dos pontos que produziram eventos como 1917 e principalmente sua intelligentsia.



sábado, 18 de março de 2017

O Estado como obra de arte - Jakob Burckhardt


Uma das primeiras coisas que se aprende numa graduação em história é que antes dos annales, a história feita era a da mera narração de fatos, de um encadeamento de acontecimentos, sem a produção de uma reflexão. Vulgarmente chamamos esta história de positivista. A questão não é tão simples, apesar de de fato estes historiadores do século XIX se preocuparem muito mais com uma apresentação de eventos do que o desenvolvimento de uma análise reflexiva. Contudo, eles tratam sim de produzir algo mais do que a mera apresentação de fatos, um exagero desprezá-los ao ponto de jogar seu trabalho na lata de lixo. Paul Ricoeur vai preferir chamá-los de escola metódica, pois em seu período era necessário justificar a separação da história das outras ciências humanas, e para isso desenvolver e justificar seu método era essencial. Jakob Burckhardt faz parte desta escola historiográfica do século XIX.
O estado como obra de arte é um capítulo separado de uma obra maior chamada A cultura do renascimento na Itália. Descobri isso lendo a ficha catalográfica do livro. Confesso que um livrinho bonitinho e baratinho lançado pela penguin, custando menos de 10 reais e discutindo a questão do Estado, me fisgou de imediato. Creio que, nos últimos tempos a questão do Estado caiu num limbo amaldiçoado dentro das ciências humanas. Não se discute mais esta questão, que é verdade já foi exaustiva e totalitária em outros momentos – e qual corrente em algum momento não o foi? Possivelmente, desejar tratar da questão do Estado hoje em dia na academia, pode lhe render a alcunha de “marxista”, e ao contrário do que se diz por aí das universidade brasileiras, isto provavelmente estará mais perto de um xingamento do que um elogio.
Burckhardt, como a grande maioria dos historiadores da época era alguma coisa do espectro da direita e que apostava na monarquia como forma de organização social. Isto é importante para entender a exposição feita por ele ao longo do livro, que é verdade, não estando atento a esta questão é uma exposição cronológica de acontecimentos, com pitadas de teoria ao longo do texto. É perceptível o foco que J. Burckhardt dá para a ação de certos indivíduos no exercício e consolidação do Estado. Seu entendimento do Estado enquanto obra de arte se justifica no fato de que “eram produto da reflexão, criações conscientes, embasadas em manifestos e bem calculados fundamentos” (p.90). De alguma forma, há a visão do Estado enquanto um aparelho, não como um simples monstro pesado, é através do Estado que o governo pode agir. Fruto da reflexão, da consciência e do cálculo, Burckhardt está colocando a razão em campo. O curioso é que Burckhardt tem um certo desprezo pela República de Veneza, que aparece até pouco, ao termos a proporção de sua importância. Afinal, por ser Burckhardt um conservador monarquista, nada mais assustador do que a ideia de conceber uma República.
Assim, fica a reflexão importante para nossos tempos. Podemos perceber como em dado momento histórico era de entendimento geral de que a instituição de repúblicas trariam a mera devassidão moral, e de fato só vemos este quadro mudar no mundo ocidental com o fim da Primeira Guerra. Por isso era necessário garantir o controle do Estado e das decisões do governo por pessoas preparadas, pessoas de bom caráter. Isto é a constituição de uma aristocracia, de um seleto grupo que governa ante a irracionalidade do povo (este é um perigo, e devasso). Sem esta composição, não há Estado enquanto obra de arte, há barbárie. Para nós fica claro o contorno autoritário, fascista e ditatorial deste raciocínio, mas observar esta questão por um viés histórico é fundamental para compreendermos o momento atual e a possibilidade de transformação. Afinal, o Estado seria um aparelho, e não uma entidade, para Jakob Burckhardt isto está claro e talvez este seja um ponto em que concordamos.


quarta-feira, 8 de março de 2017

Planeta Favela - Mike Davis



O assunto das favelas é pouco e mal debatido, muito provável por ser um assunto desagradável, relevamos para segundo plano um assunto vital para a discussão urbana. Mike Davis produziu este trabalho sintético sobre o panorama das habitações irregulares, chamadas de favelas no Brasil, mas que conseguem encontrar um termo específico em cada lugar: villas, pueblos jovenes, Slum, etc. O quadro geral e desesperador, se temos uma pequena fatia nos países europeus em habitações irregulares, não podemos esquecer de olhar para os locais onde se encontram a maior parcela da humanidade, os chamados países subdesenvolvidos e sua gigantesca população vivendo em locais miseráveis. Se isto se aplica ao Brasil, que como arredondou Bárbara Freitag em Teorias da cidade, temos 50% da população morando em habitações irregulares ao incluirmos também os cortiços, puxadinhos e quartinhos escondidos e absorvidos pela pesada estrutura urbana das cidades, a situação é muito mais crítica em locais como a Índia ou o continente africano. Curiosamente, também são países com um volume populacional maior, e uma estrutura estatal mais frágil.
Um dos pontos fundamentais que Davis traz para a discussão está num dos problemas que acredito serem fundamentais nesse princípio de século XXI, debatido à exaustão em períodos anteriores, foi posicionado como assunto de menor importância nos últimos trinta anos: a questão do Estado. Dada a euforia modernista do pós-guerra, tivemos um período relativamente extenso de destaque para a arquitetura moderna. Brasília é concebida neste período, bem como a ideia de conjuntos habitacionais. Grosso modo, os conjuntos habitacionais foram a saída encontrada pelos variados governos, tanto nos blocos socialistas como capitalistas da época, para a questão da habitação, dado que haviam dois problemas, a destruição causada pela guerra (questão muito mais séria na Europa e sua parte leste) e o chamado baby booming, também conhecido como explosão demográfica, possível por coisas como maior expectativa de vida, redução da mortalidade infantil e não desconsidero elencar um certo otimismo para com o futuro. De qualquer forma, o problema era simples, faltava habitação decente para toda a população. Para piorar, é ao longo do século XX que vemos o mundo deixando de ser rural para se tornar urbano. Os conjuntos habitacionais começam a demonstrar seus problemas, o modernismo adotado sem um postura crítica busca simplesmente suprir um problema numérico/matemático e coloca de lado a questão humana. Não demora observamos conjuntos habitacionais que são verdadeiros pesadelos, vemos isso em filmes como Clockers de Spike Lee, ou em histórias como a de Christiane F., todas com uma importante ambientação em torno destes grandes complexos de concreto armado. Desta forma, a forma com que se aborda a questão habitacional muda, de uma abordagem onde o Estado era o principal agente, para uma abordagem de financiamento e individualização.
Este é o ponto chave em torno da discussão que ocorre no livro. Em primeiro momento, olhando para a política de Estados como agentes para a resolução dessa carência habitacional e sua resolução em torno de conjuntos habitacionais, apresentarmos uma política de liberação de crédito parece muito mais sensata. Temos aqui uma questão para a qual eu sou simpático, já colocada por Braudel que é a de não olharmos para a história seduzidos pelo acontecimento, pelos períodos curtos, é necessário uma certa densidade histórica e por isso a atenção para períodos mais longos. E com isto, podemos esticar nossa observação para o momento em que a política de liberação de crédito (vide Minha casa, minha vida) é adotada em detrimento da de um Estado enquanto agente direto. O que vamos observar é um problema habitacional agravado, e um gasto maior de dinheiro. A ideia em princípio interessante, de liberar crédito para que as pessoas individualmente melhorassem sua habitação, ou financiassem uma nova, revelou-se um grande problema.
Desta forma, o que se reforçou foi a principal causa de carência habitacional, a especulação imobiliária. Injetando dinheiro no mercado, sua reação é aumentar os preços. E as famílias que conseguiram sair de favelas, não hesitaram em alugar seus barracos, ou vendê-los, e desta forma a habitação precária continuou sendo utilizada. Com o aumento de preços, sair da situação precária se tornou um desafio ainda maior. De certa forma, não é algo diferente do que vimos em programas como o famoso Minha casa, minha vida, que trazia uma opção de financiamento atraente em relação aos outros programas (privados), mas não garantiu moradia decente, seja no sentido técnico da coisa (qualidade do material usado, seguimento de regras básicas da ABNT, etc), seja no sentido social, humano (locais distantes, sem comércio próximo, estresse diário com deslocamento para o trabalho, etc). Não podemos ignorar, que uma parte deste problema também está ligado a uma questão cultural, de que as classes mais abastadas simplesmente desejam distância de classes menos abastadas, isto é uma questão sem explicação racional, mas que encontra sua justificativa nos sentimentos de repulsa, nojo e medo. Com isto, podemos debater através deste livro a situação atual das precárias habitações em que vivem a maior parcela da humanidade, bem como constatar o fracasso e a necessidade de buscar novas políticas públicas para habitação que não sejam a construção de grotescos conjuntos habitacionais ou caros financiamentos e liberação de crédito.
Uma parte do ensaio que está no final do livro.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

Mondovino - Jonathan Nossiter


Além de cineasta Jonathan Nossiter é sommelier, por isso durante longos anos a fio ele foi percorrendo variadas localidades com sua câmera de mão para falar sobre vinho nos principais centros produtores. A ideia base que Nossiter carrega ao tratar do vinho, é o curioso fato de que durante um longo período da história humana, o vinho foi uma bebida que acompanhou as multidões. Era vinho o que a plateia do coliseu bebia, era vinho o que era servido nos bacanais gregos, era vinho uma das bebidas consumidas no Egito antigo ou na mesopotâmia, não por acaso é até hoje o vinho a bebida consumida num importante ritual religioso dos cristãos. Porém, em dado momento mais recente, coisa de não mais de duzentos anos, o vinho foi ganhando um caráter de aristocracia, de elite, de bebida nobre frente a todas as outras. É ai que as coisas começam a complicar.
Atualmente a indústria do vinho gera muito dinheiro, especialmente se olharmos para os vinhos mais famosos que ultrapassam tranquilamente os mil reais. Nossiter vê alguns problemas no consumo de vinho destes tempos pra cá. Seu status de bebida nobre frente todas as outras bebidas, é uma das coisas que mais afasta as pessoas do vinho, não propriamente evitando que elas consumam a bebida, mas que criem uma relação pouco produtiva com ela. Não por acaso, uma das primeiras cenas, dos primeiros locais visitados é uma plantação de uvas Malvasia na Itália. Duas falas marcantes são a de Nossiter explicando porque estava lá, dizendo que havia provado aquele vinho nua cantina ali perto e que gostou tanto que queria cumprimentar o produtor. O produtor por sua vez, que era um sujeito velhinho acompanhado de sua esposa, explica que a Malvasia era plantada por ele por uma tradição de fazer o próprio vinho da fazenda e de oferecer para as pessoas, tal qual se oferece café, em sua explicação ele lamentava que seus vizinhos não plantavam mais a uva, pois não valia a pena financeiramente.
Ao longo do documentário vai ficando clara a força que grandes empresas têm frente estes produtores pequenos, sejam alguns bem sucedidos franceses que conseguem vender seus vinhos ainda com algum caráter de boutique, seja um mestiço argentino acoado com sua pequena propriedade frente grandes produtores de vinho da região de Mendoza, Argentina. A problemática por trás destes pequenos produtores perdendo espaço para gigantescos e até mesmo transcontinentais conglomerados, é uma certa “standartização” do vinho. Isto fica claro na figura de Michel Rolland e principalmente de Robert Parker. A figura de Parker talvez seja mais conhecida. Certamente R. Parker é o crítico de vinhos mais famoso, e você vai ver a influência que ele tem assim que abrir qualquer site que venda vinhos online, e como vinhos mais caros têm o seu preço mais alto justificado através da pontuação dada por Parker. Desta forma, unindo as duas pontas de um enólogo como Rolland que passa o mesmo método produtivo para vários vinicultores e de um Robert Parker que define o bom e ruim no mundo do vinho unicamente através de seu paladar, teremos vinhos cada vez mais iguais, mais manipulados e sem caráter, sem uma personalidade específica. O alerta de Nossiter não é sem exagero, vide a quantidade de vinhos das castas Cabernet Sauvignon, Merlot, Sauvignon Blanc e Chardonnay. Isso que nem estamos falando de Tannat, Malbec, Syrah, Riesling ou Torrontés, mas podemos pensar em países com tradição vinífera de longa data, como Portugal, Espanha, Alemanha, Áustria, Romênia, Grécia, Turquia e Geórgia, cada um com sua forma de produzir e suas castas específicas. Certamente o filme de Nossiter nos ajuda a buscar vinhos menos óbvios e menos caros, como foi afirmado por ele numa entrevista, devemos beber vinhos de cinco até cem dólares, com o que ele complementou que raramente pagava mais de cem dólares pelo fato de poucos vinhos realmente valerem isso.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

Primer - Shane Carruth


Aviso: talvez seja melhor ver o filme antes de ler sobre ele.
Primer tem um roteiro base simples, que você já viu em outros filmes: a viagem no tempo. Conhecemos as possíveis implicações que isto traria caso sua possibilidade se concretizasse. As implicações são conhecidas e variadas, desde não cruzar com seu duplo e interferir na ordem das coisas, até a impossibilidade de ir para o futuro, já que ele ainda não aconteceu.
O que surpreende, é seu orçamento de sete mil dólares e a forma com que a história é contada. Shane Carruth é graduado em matemática e trabalhava no desenvolvimento de softwares antes de iniciar sua carreira cinematográfica, e isto faz diferença na forma com que o filme é feito. A primeira coisa, e para mim o ponto mais forte, está no fato de não haver simplificação nos diálogos, especialmente entre os dois protagonistas, mesmo quando eles discutem o aparelho que estão desenvolvendo. A descoberta é por acidente, e o acidente torna crível a descoberta dos dois amigos, eles acreditavam estar desenvolvendo algo como um redutor de peso. Como aprendemos na escola, o peso se altera alterando a gravidade e uma distorção no espaço-tempo distorceria a gravidade, logo mudaria o peso. Acidentalmente, o que ocorre no aparelho desenvolvido pelos dois amigos em sua garagem, é uma curta viagem no tempo, sempre 6 horas atrás no passado.
Em princípio a ideia era aproveitar esta vantagem para ganhar um bom dinheiro na bolsa de valores todos os dias, já que os dois são engenheiros em empresas privadas de desenvolvimento de tecnologia e sabem que o mais certo é serem demitidos quando sua vitalidade diminuir e seu salário aumentar, ali pelos 40 anos. São coisas como essa, que aparecem de soslaio ao longo do filme, que dão o toque de real para ele, que muitas vezes falta em outros filmes sobre viagem no tempo. Para reforçar esse ar de realidade e seriedade que temos ao longo de todo o filme, a estética sempre preza uma imagem complicada, pouco clara, confusa, nos produzindo um estado de pré-viagem com o tempo. A confusão narrativa é proposital, tomar contato com outras temporalidades que não a do presente, sempre nos produz uma sensação das mais estranhas – e como historiador devo dizer, das mais prazerosas também.
Desta forma, são pontos como esse, que para além do baixo orçamento de Primer, que usou e abusou de amigos e conhecidos de Carruth como atores e figurantes, bem como suas casas suburbanas, que tornam o filme interessante, conseguindo ser sério, nos prender e o melhor de tudo, não nos tratar como completos imbecis frente à tela. Afinal, se era preciso tratar de um tema já tão batido como a viagem no tempo, era necessário trazer algo de novo, Shane Carruth conseguiu.