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Certa vez li em algum lugar que o livro deve ser um objeto de
transformação. O livro deve conversar com você, deve servir para
você como um óculos, você usa para mudar sua visão sobre algo. Ou
evitando o caráter de correção que o óculos pode ter, a leitura
pode trazer efeitos semelhantes a consumir alguma droga, ele pode
mudar sua forma de ver e perceber as coisas. Não devemos ter medo do
livro, nem da mudança. Constantemente estamos trilhando algum
caminho, às vezes mais rápido outras vezes mais devagar. Muitas
vezes a leitura pode te ajudar, mas nem sempre.
O que é muito bom observar é que de alguma forma o livro aqui não
ganha nenhum bastião especial. Ele foi encontrado no lixo,
desprezado como tantas outras coisas. Mas é a partir deste
acontecimento que outros se tornam possíveis. E para isto talvez não
houvesse maneira melhor de dizer isso do que da forma que foi dito,
no caso publicando esta história de forma independente, quase
anônima e a um custo baixo. Além do mais a forma com que irá
circular, literalmente passando de mão em mão, talvez seja uma das
mais bonitas atualmente.
Pode parecer clichê falar sobre isso, mas cada vez mais parece
importante não tratar as pessoas como burras. Acreditar no seu
conhecimento e capacidade de raciocínio, reconhecer isso no homem
popular, algo que parece muito bem ignorado pela tradicional
classe-média brasileira. O grande personagem da história é um
sujeito solitário, que vive num lixão, que pinça as coisas feito
um urubu que pinça a carniça. A metáfora do urubu é mais do que
uma simples referência ao lixão, o personagem faz feito esta ave:
pinça o que lhe interessa e escolhe o que irá ingerir. Por mais que
existam limitações, ele estará escolhendo o que ingerir. Gosto da
metáfora das tatuagens, onde diferente do ferro quente que marca o
gado, você está escolhendo quais serão suas marcas no corpo. Em
alguma medida o livro possibilita isto, especialmente a literatura,
ou o livro que lemos deitado na cama, já que este não possui
obrigatoriedade alguma.
Não só é uma história como é também uma profanação, e este
ato é cada vez mais necessário hoje em dia, até porque parece que
apenas as crianças ainda conseguem faze-lo de forma autêntica. É
brincando (Spielen, Play, Jour) que se pode construir coisas novas. E
profanando, tirando as coisas de seu lugar e função no caso, que se
possibilita novas visões. Profanar o livro talvez ajude a
relacionar-se com ele. E a relação se mostra como uma das coisas
mais importantes para o ser humano, já que o livro pouco importa se
eu não me relaciono com ele, e esta relação acaba demonstrando
muito mais do que simples entretenimento capitalista, onde parece
haver uma simples busca por prazeres secretos e passiveis de consumo.