A história russa é algo impressionante, o Império Russo se envolve
num conflito sem proporções até então, que foi a Primeira Guerra,
para em seguida ao seu processo revolucionário, iniciar um conflito
de proporções também significativas naquilo que foi a sua Guerra
Civil. A confusão é grande, as perguntas várias. Temos comunistas,
socialistas, socialistas revolucionários, anarquistas, liberais,
monarquistas e salteadores, compondo uma miríade de grupos armados
sem fim, prevalecendo a violência, a fome e a desolação. Não
temos dimensão de como as guerras podem ser desgraçadas,
normalmente somos bombardeados por narrativas que ressaltam o
heroísmo da guerra, que não condiz em nada com os relatos mais
reais. O heroísmo da guerra pouco convence quem passou por ela.
Isaac Bábel é singular. Ele faz parte daquela intelligentsia
russa que apoiou os bolcheviques. Bábel era certamente comunista,
como tantos outros de sua geração, e penso, não há nada mais
sedutor do que os comunistas intelectuais do entre guerras. Seu livro
O Exército de Cavalaria
é seu retrato desta guerra desgraçada na frente polonesa. O
interessante é sua distinção em relação aos seus colegas de
batalha, no geral pessoas simples, não raro analfabetas e rudes no
trato, seja entre amigos ou inimigos. Fica clara a distinção entre
o sujeito franzino de óculos e seus colegas de origem pobre e já
acostumados aos calos que são potencializados por uma guerra. O uso
da força é um lugar comum, todos a usam, seja na busca por respeito
ou obediência, possibilitando impor algo (nem que seja a sua
macheza). Seu
alter-ego, apresentado ao longo dos vários contos agrupados no
livro, que acredito sejam mais interessantes lidos na ordem, é
marcado por seu lugar e origem diferentes. Ainda assim, ele não se
sente humilhado ou diminuído por lutar lado a lado destes sujeitos,
que algumas vezes até o desprezam.
O uso de cavalos é algo que
surpreende. Empregados em larga escala nas guerras, começa a perder
protagonismo com o advento da metralhadora, da artilharia e do
tanque, elementos presentes desde a Primeira Guerra. Ainda assim, a
URSS empregou vasta quantidade de cavalaria e sua Guerra Civil e até
mesmo depois na Segunda Guerra. Mesmo com uma expectativa de vida
baixa, já não sendo mais tão gloriosa como outrora, a cavalaria
tinha sua eficiência em combate. O campo aberto é a paisagem da
história, e distâncias grandes em que os olhos não alcançam o fim
são difíceis de transpor, nisto um cavalariano leva vantagem. Outro
elemento que também explicaria este uso, é que após a época de
chuvas ou de degelo, o campo rapidamente se transforma num lodaçal,
e assim a pata do cavalo ainda é mais eficiente do que a roda de um
carro, e até a esteira de um tanque. Por fim, não podemos esquecer
que o Império Russo teve sérias dificuldades em sua indústria
acompanhar os esforços de guerra, o que nos levam a pensar numa
escassez generalizada, dos alimentos ao aço. Cavalos podem ser uma
vantagem na falta de veículos. A criatividade para a morte
surpreende, é possível imaginar cenas onde infantaria, cavalaria e
as carroças equipadas com metralhadora se digladiam, entre soldados
de uniforme das tropas vermelhas, e tropas comandadas por excêntricos
aristocratas.
É um livro vivo, que nos ajuda a adentrar o campo de batalha e o
cotidiano do soldado, marcado pelo tédio sobreposto de imediato pela
vontade de continuar vivo. Ilustra também, as questões culturais da
época, como o tratamento descabido com os judeus, grupo que o
personagem principal nunca revela pertencer, e a crença religiosa
mesmo entre os soldados vermelhos. O interessante do livro é que,
mesmo com todo seu fervor comunista, I. Bábel não é bitolado em
suas crenças. Ao longo do livro, conforme os elogios são feitos é
possível perceber algum tipo de crítica ao que acontece, um olhar
mais cético, mais sincero. A guerra que eles lutam na Polônia não
é coberta de glórias, pelo contrário. Matar pessoas, traidoras ou
inimigas, é sempre uma tarefa desagradável. Os soldados também não
são o melhor exemplo de homem soviético, muitas vezes destratando a
população local por puro cansaço das batalhas. Muitas coisas sem
lógica, feito a guerra. Ainda assim os soldados lutam, não desistem
e produzem verdadeiras cenas de aventura. Nada mais honesto do que
esta contradição.
BÁBEL, Isaac. O exército de cavalaria. São Paulo: Cosac naify:
2006.