segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

O Natimorto - Lourenço Mutarelli

        Conhecia Lourenço Mutarelli pelo livro e filme o cheiro do ralo, creio que junto com Mia Couto e Manuel de Barros ele representa o que vêm sendo produzido de melhor na literatura contemporânea de língua portuguesa. Sua escrita flui, como poucos escritores conseguem fazer, e quem escreve sabe o quanto isto é difícil, há muito trabalho para se alcançar este nível de escrita, até porque não existem fórmulas para escrever.
        Já consagrado no mundo dos quadrinhos, que infelizmente desconheço, aventura-se na literatura com cheiro do ralo, escrito segundo nos conta este homem pantufa, numa semana de carnaval. Seu hábito “caseiro”, ritmado a muito trabalho, café e cigarros, estão impressos no pouco contato que tive com seu trabalho (resumido em dois livros). No caso do Natimorto, o desejo do sujeito em ficar numa sala sem sair é contagiante e ao mesmo tempo claustrofóbico, as indagações feitas pela mulher de voz abençoada faziam eco as minhas. Os diálogos rápidos que conduzem sua obra dão a fluidez e sagacidade necessárias.
        Ultrapassando uma simples relação mediadas pelo sexo e o corpo, o autor vai conduzindo um personagem principal muito esperto e de raciocínio afiado, sem deixar de lado sua excentricidade. A fuga do mundo “lá fora” atinge em cheio muitos enseios meus – o que já é alguma coisa. O personagem principal não precisa daquele mundo chamado de real e existente, tudo ocorre ao redor de uma cama mofada em constantes xícaras de café. A comida é desprezada.
Há toda uma relação especial com o andar das coisas, uma fixação kafkaniana com o que está por vir. Mesmo sabendo que fumar pode lhe matar, o prazer esta em correr em alta velocidade e de pés descalços pelo fio da navalha. A coragem é necessária para fugir. Pode parecer uma observação vazia, mas há um identificação entre o agente e Raskolnikóv. Sua excentricidade e delírios caminham juntos. Não crime, pecado ou arrependimento, apenas uma mente conturbada, extremamente criativa e afiada. Odeio tais comparações, mas ambos possuem uma sinistra relação com seu quarto.
        A relação com a cidade está ali também. A rodoviária, o hotel, as indas e vindas. Mesmo trancado no quarto, a cidade pulsa ali, quase feito organismo vivo, que não se vê mas sente. Igual as batidas do coração ao colar a mão no peito. A eventual “fuga” para o sítio arquitetada pelo maestro, não deixa de ser um pequeno retiro num quarto de hotel. É no microcosmo deste ambiente que as historietas ganham vida. É entre a xícaras de café que elas estão. Apesar de muitas vezes terem um simplismo, não são em momento algum menos belas. Como escutei uma vez, “algumas vezes precisamos dizer o óbvio”. Por vezes isto ocorre na obra, mas não é uma obviedade boba, vazia e sem novidade. Até porque, o ideal é dizer algo duas vezes, pois quem diz sempre é o outro para quem escuta.
        Mutarelli dá vida de forma sóbria a consistente a estes personagens urbanos que podemos contemplar sentados numa mesa em algum lugar movimentado da cidade enquanto consumimos pacientemente nossa xícara de café.

Um comentário:

  1. Nunca li o Mutarelli. Pô, eu consegui locar o Longe Daqui Aqui Mesmo do Antônio Bivar na biblioteca depois de muito lutar por um comprovante de residência e pra minha decepção o livro tá com mofo e eu tenho alergia.... fico daqui de longe observando-o louco para lê-lo, mas não vai dar.

    Mesmo assim li o começo... altamente recomendável.

    Abs

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