quinta-feira, 21 de junho de 2018

O exército de cavalaria - Isaac Bábel


A história russa é algo impressionante, o Império Russo se envolve num conflito sem proporções até então, que foi a Primeira Guerra, para em seguida ao seu processo revolucionário, iniciar um conflito de proporções também significativas naquilo que foi a sua Guerra Civil. A confusão é grande, as perguntas várias. Temos comunistas, socialistas, socialistas revolucionários, anarquistas, liberais, monarquistas e salteadores, compondo uma miríade de grupos armados sem fim, prevalecendo a violência, a fome e a desolação. Não temos dimensão de como as guerras podem ser desgraçadas, normalmente somos bombardeados por narrativas que ressaltam o heroísmo da guerra, que não condiz em nada com os relatos mais reais. O heroísmo da guerra pouco convence quem passou por ela.
Isaac Bábel é singular. Ele faz parte daquela intelligentsia russa que apoiou os bolcheviques. Bábel era certamente comunista, como tantos outros de sua geração, e penso, não há nada mais sedutor do que os comunistas intelectuais do entre guerras. Seu livro O Exército de Cavalaria é seu retrato desta guerra desgraçada na frente polonesa. O interessante é sua distinção em relação aos seus colegas de batalha, no geral pessoas simples, não raro analfabetas e rudes no trato, seja entre amigos ou inimigos. Fica clara a distinção entre o sujeito franzino de óculos e seus colegas de origem pobre e já acostumados aos calos que são potencializados por uma guerra. O uso da força é um lugar comum, todos a usam, seja na busca por respeito ou obediência, possibilitando impor algo (nem que seja a sua macheza). Seu alter-ego, apresentado ao longo dos vários contos agrupados no livro, que acredito sejam mais interessantes lidos na ordem, é marcado por seu lugar e origem diferentes. Ainda assim, ele não se sente humilhado ou diminuído por lutar lado a lado destes sujeitos, que algumas vezes até o desprezam.
O uso de cavalos é algo que surpreende. Empregados em larga escala nas guerras, começa a perder protagonismo com o advento da metralhadora, da artilharia e do tanque, elementos presentes desde a Primeira Guerra. Ainda assim, a URSS empregou vasta quantidade de cavalaria e sua Guerra Civil e até mesmo depois na Segunda Guerra. Mesmo com uma expectativa de vida baixa, já não sendo mais tão gloriosa como outrora, a cavalaria tinha sua eficiência em combate. O campo aberto é a paisagem da história, e distâncias grandes em que os olhos não alcançam o fim são difíceis de transpor, nisto um cavalariano leva vantagem. Outro elemento que também explicaria este uso, é que após a época de chuvas ou de degelo, o campo rapidamente se transforma num lodaçal, e assim a pata do cavalo ainda é mais eficiente do que a roda de um carro, e até a esteira de um tanque. Por fim, não podemos esquecer que o Império Russo teve sérias dificuldades em sua indústria acompanhar os esforços de guerra, o que nos levam a pensar numa escassez generalizada, dos alimentos ao aço. Cavalos podem ser uma vantagem na falta de veículos. A criatividade para a morte surpreende, é possível imaginar cenas onde infantaria, cavalaria e as carroças equipadas com metralhadora se digladiam, entre soldados de uniforme das tropas vermelhas, e tropas comandadas por excêntricos aristocratas.
É um livro vivo, que nos ajuda a adentrar o campo de batalha e o cotidiano do soldado, marcado pelo tédio sobreposto de imediato pela vontade de continuar vivo. Ilustra também, as questões culturais da época, como o tratamento descabido com os judeus, grupo que o personagem principal nunca revela pertencer, e a crença religiosa mesmo entre os soldados vermelhos. O interessante do livro é que, mesmo com todo seu fervor comunista, I. Bábel não é bitolado em suas crenças. Ao longo do livro, conforme os elogios são feitos é possível perceber algum tipo de crítica ao que acontece, um olhar mais cético, mais sincero. A guerra que eles lutam na Polônia não é coberta de glórias, pelo contrário. Matar pessoas, traidoras ou inimigas, é sempre uma tarefa desagradável. Os soldados também não são o melhor exemplo de homem soviético, muitas vezes destratando a população local por puro cansaço das batalhas. Muitas coisas sem lógica, feito a guerra. Ainda assim os soldados lutam, não desistem e produzem verdadeiras cenas de aventura. Nada mais honesto do que esta contradição.

BÁBEL, Isaac. O exército de cavalaria. São Paulo: Cosac naify: 2006.



sábado, 16 de junho de 2018

Imprensa e poder - Moacir Pereira

       Mesmo trazendo pouco mais que uma narrativa corrida sobre a imprensa de Santa Catarina, a obra de Moacir Pereira continua sendo consultada pelo mérito de apresentar um quadro expandido do estado, não se restringindo a um único grupo, meio ou região. Podemos suspeitar que ele não faz recurso a ghost writer, dado seu volume de produção, que honestamente custaria caro sustentar por outros meios que não o próprio punho. O autor também possui formação acadêmica, com graduação em direito e mestrado em ciência política. Certamente, isto lhe traz algum mérito na composição de seu livro, bem indicado no título Imprensa e poder: a comunicação em Santa Catarina, apesar de considerar que não o faz com tanta maestria.
      Este livro traz de forma clara, como a imprensa catarinense esteve atrelada as classes políticas de Santa Catarina, apesar de muitas vezes resumir esta questão as “forças ocultas”, deixando a história inconclusa. Ao longo do texto elogios ao profissionalismo e modernização trazidos pela RBS são apresentados. É somente a partir da década de 1980 que a imprensa catarinense se profissionaliza, perdendo seu vínculo partidário. Na listagem entre as páginas 96 e 101 são apresentadas as filiações partidárias dos meios de comunicação.
      De fato, na crítica é necessário certa cautela e paciência. Pois, mesmo que seja plausível sua afirmação de não poder vincular os grandes meios de comunicação catarinense a algum partido político, é apagado destes meios de comunicação, com destaque para os pertencentes ao grupo RBS, sua questão política, tornando o livro uma longa carta de pedido ou de agradecimento de emprego à RBS (hoje, NSC). Seu prefácio realizado por Nelson Wedekin, então senador, e sua publicação pela Fundação Catarinense de Cultura, bem como sua atuação como jornalista político são deixados em suspenso. Não há uma leitura mais íntima da questão, o que poderia ser feito por alguém tão próximo ao processo, ficando claro o ato de evitar dissabores aos seus amigos mais próximos.
      Colher de chá para o período em que foi escrito, momento que a historiografia brasileira ainda observava de forma menos séria os periódicos, o que justificaria uma bibliografia tão magra. Junto desta, o fato de não ser um livro de História – minha área de interesse e atuação. O livro nos serve para pensar duas questões: 1) como a classe historiadora ainda depende de livros como este, tempos atrás chamados pejorativamente de memorialistas, dado seu foco factual e linear no olhar sobre o passado, colocando sobretudo a limitação do ainda existente encantamento idealizado com a escola dos Annales; e 2) o interessante que seria uma produção bibliográfica no campo da história, sobre a figura de Moacir Pereira, sujeito este, intimamente relacionado com a imprensa e a política partidária, dado sua proximidade e circulação entre o meio.

PEREIRA, Moacir. Imprensa e poder: a comunicação em Santa Catarina. Florianópolis: Lunardelli FCC Edições, 1992. 


sexta-feira, 25 de agosto de 2017

Formação do Brasil contemporâneo - Caio Prado Júnior


Caio Prado Júnior é daqueles clássicos que quando lemos, nos perguntamos como pôde passar tanto tempo sem o ter lido? Formação do Brasil contemporâneo, lançado 75 anos atrás, mais precisamente em 1942, continua tratando de um Brasil atual. Seu recorte focado no Brasil colonial e seu processo de colonização. A obra é famosa por apresentar os famosos ciclos econômicos. Por entender o período colonial enquanto momento de gênese do Brasil, compondo o período mais extenso da história do país com aproximadamente 300 anos, é neste período que podemos perceber elementos de continuidade desde longa data. Basicamente, o elemento que carregamos desde o período colonial é a extração de recursos primários para exportação as nações centrais. O modelo de empreendimento está rascunhado nas grandes propriedades e no emprego de mão de obra barata (escrava, semi-escrava ou quase isso), acompanhado de baixa mecanização (braçal), pouca mobilidade social (sociedade escravocrata), baixo dinamismo (monocultura), altos lucros e a inventividade (tecnologia) mais erma possível.
A partir destas características gerais, os ciclos se desenvolvem com suas peculiaridades. Podemos falar de três grandes ciclos: a cana-de-açúcar, o ouro e o café, que apesar de ter seu momento de glória apenas após a independência, mais precisamente na segunda metade do XIX, o assunto é ensaiado por Caio Prado Júnior, como também é um ciclo com seus primeiros passos no período colonial. Por se tratar de uma economia voltada para exportação aos mercados das economias centrais (Europa ocidental), este será um dos elementos que favoreceram o povoamento restrito ao litoral, mantendo os centros de produção o mais próximo possível dos portos e desconectados entre si. Este modelo latifundiário e monocultor tornava as condições de trabalho extremamente pesadas e desagradáveis, recorrendo a mão de obra escrava, tanto indígena quando africana. Os indígenas foram escravizados das formas mais distintas, e seu emprego entrou em declínio conforme o número deles diminuía – epidemias e serviço pesado associados a péssimas condições de trabalho favorecem o extermínio de populações. Como era utilizada mão de obra escrava, e por isso barata, a preocupação com o desenvolvimento de novas técnicas era nulo e até mesmo não incentivado, situação que piorou após a independência das 13 colônias, gerando o entendimento de que o desenvolvimento de manufaturas favoreciam a busca por independência.
Por serem latifúndios monocultores voltados para altas margens de lucro, as crises de escassez de alimentos eram constantes, dado que os fazendeiros não viam vantagem em ocupar terreno plantando alimentos como mandioca ou milho, quando a venda de açúcar ou a extração d'ouro se mostravam mais rentáveis, possibilitando maior lucro ao comprar esses alimentos em vez de plantar. A crise de alimentos era constante, em regiões como em Pernambuco, onde a geografia menos acidentada favorecia a extensão dos latifúndios. a situação era mais grave. Enquanto no Rio de janeiro mais acidentado, provendo pequenos espaços menos favoráveis ao latifúndio monocultor, as pequenas e médias propriedades se concentravam na produção de alimentos básicos como: milho, mandioca e feijão. A solução encontrada para produção de alimentos sem atrapalhar a monocultura foi a criação de gado. Criado solto após as regiões monocultoras, na hinterland, se alimentava do que era oferecido pela natureza sob a vigilância de alguns vaqueiros, tornando sua manutenção barata. Outra vantagem é que o gado se transporta até os centros de abate e consumo, também barateando seu transporte.
Assim sendo, temos retratado a pauta da economia brasileira a partir de sua gênese colonial, período mais extenso de nossa história, e por isso nos legando os traços de continuidade mais rígidos, apesar de rupturas significativas. Mesmo com todas as transformações ocorridas desde a independência ou 1942 (ano de publicação da obra), continua complicado sob uma análise mais abrangente do Brasil, não perceber a dependência econômica na extração de commodities para a venda no mercado externo. Bem verdade que, algum maior grau de manufatura se apresenta, assim como não há a dependência de um único setor como foi outrora em relação ao café, e as exportações, ainda que majoritariamente para os países centrais, também encontram espaço em outros mercados. Mas, nossa mão de obra continua barata, os latifúndios ainda predominam, o grau de manufatura é limitado o que não só agrega pouco valor ao produto, como dificulta a importante mobilidade social, as patentes ainda são poucas e algo do mais significativo, a maior parcela da população brasileira continua morando em até 100Km de distância do mar. Transformar esta estrutura colonial que carregamos talvez seja um dos maiores desafios.


sábado, 10 de junho de 2017

O iluminismo e os reis filósofos - Luiz Roberto Salinas Fortes

 
Livro composto no melhor estilo “primeiros passos” faz parte de uma coleção voltada ao debate histórico. O caso aqui é do Iluminismo, e através de um curioso baralho de cartas onde as realezas são substituídas por filósofos, o autor tece uma relação entre estes pensadores clássicos do Iluminismo, sobretudo os franceses, e os reis déspotas esclarecidos.
Apesar de não tratar especificamente desta questão, estamos abordando um século XVIII em que a França conseguiu galgar o posto de principal nação. Ultrapassando as potências ibéricas, é a França (com a Inglaterra muito próxima) que ocupa a centralidade do mundo ocidental, e junto com sua etiqueta, exércitos e comerciantes vão também as ideias. Em superação ao Ancien Régime, será necessário romper com seus preceitos e dogmas. Estes se organizavam fundamentalmente em torno da religião, e a justificativa do rei e seu governo estava num direito divino explicado através de uma complexa escolástica. O movimento que nos interessa aqui é, o rei deixar de ser uma figura divina para se tornar uma figura de razão, e, é esta última que vai galgar o centro de tomadas de decisão e raciocínio que culminam na Revolução Francesa e fundamentam a modernidade. O processo histórico de que tratamos é extenso, muitos colocam a tomada de Constantinopla pelos Turcos, mas seguramente o evento das grandes navegações dialoga melhor com a nova dinâmica de pensamento que começa a se constituir: a modernidade.
É um processo que propicia a emergência de figuras até então excluídas, pessoas de certa riqueza, mas não necessariamente com título de nobreza, os burgueses. Estes colocam a razão, o indivíduo, a liberdade e a propriedade como os valores fundamentais para a constituição de uma sociedade. Isto estava em distinção com a soberania incontestável do rei e da Igreja, dois organismos que não raro se confundiam, e consequentemente da honra em obedecer e servir ao rei – o que por extensão era servir e obedecer aos pressupostos divinos. Mesmo que este Ancien Régime não fosse tão rígido como o delineamos agora, é notável como suas estruturas começam a ruir ao longo do século XVIII e novas questões são colocadas.
O Iluminismo não se entendia como um movimento claro e coeso, a briga e discórdia entre suas principais figuras era recorrente. O que ocorre é uma certa novidade, onde figuras antes impossibilitadas de alguma participação política, começam a fazer seu espaço. São os burgueses, pois em sua maioria não viviam do trabalho bruto dos camponeses e não eram nobres. Em sua maioria, estavam mais próximos do que hoje é chamado de profissionais liberais. A novidade está em, ao mesmo tempo que muitos destes pensadores eram presos ou perseguidos por seus déspotas em seus respectivos países, não raro encontravam algum apoio e abrigo no seio de uma corte estrangeira. Estes déspotas estavam, em maior ou menor grau, sintonizados com os debates de seu tempo. Verdade que poucos eram um Frederico II da Prússia, mas também é verdade que ele não era exceção. Desta forma muitos destes Iluministas acabaram trabalhando ou aconselhando muitos destes reis, que se mostravam de fato interessados pelas questões postas pelo Iluminismo. Sua ferocidade com os detratores ao mesmo tempo que demonstravam interesse pelas novas obras lhe dá o título de déspotas esclarecidos.
O autor em sua conclusão é algo pessimista e corre um sério risco de concluir sua análise com algo de anacronismo ao afirmar que pouco mudou. As mudanças são significativas, e não por acaso temos uma Revolução encerrando este século que foi o XVIII. Ao longo do próprio processo uma integração e comunicação entre os diferentes sujeitos de diferentes nações, demonstram uma transformação significativa em relação a um mundo antes em menor diálogo. Isto é possível pelas questões técnicas da época, como melhoria e expansão da rede de estradas e carruagens bem como da navegação, e fundamentalmente do impulso de diálogo com outros povos e outros sujeitos. Não podemos ignorar que ao termos um rei protegendo alguém perseguido por outro rei, o movimento de constituição de Estados soberanos se faz mais claro e nos auxilia no entendimento da consolidação dos Estados nacionais no pós Revolução Francesa. A simples questão do surgimento do Estado moderno e de sua transformação em um aparelho que deve servir ao bem estar do rei para servir o bem estar da nação, é algo notável. Há transformações significativas sim, apesar do justo pessimismo do autor em sua conclusão, ao notar que algumas questões ainda se arrastam. E nisto curiosamente está o mérito do livro, ele demonstra o processo de tensão em que esta transformação histórica ocorreu. Em extenso período, os pensadores Iluministas e os déspotas conviveram em constante negociação de seus atritos e concordâncias, porém em dado momento a dialética alcançou seu limite de contradições e o constante choque e fricção gerou um evento explosivo como a Revolução Francesa.