sexta-feira, 31 de maio de 2013

Lugares para a História - Arlette Farge


Peter Gay já demonstrou que a História pode se aventurar junto com a psicologia. Ambas áreas do conhecimento me interessam, e parecem tocar numa questão importante do ser humano, a pele – ou seja, as sensações, sentimentos. O século XX começou marcado pela crença na modernidade, na tecnologia e na ciência como salvadoras do mundo, uma “morte de Deus” já se anunciava no horizonte do século XIX e parece ter se concretizado ao longo do século seguinte, com o mundo ocidental se mostrando cada vez menos místico. Esta confiança enorme nestes três elementos foi também um dos fatores que levaram a coisas terríveis como as duas guerras mundiais e o fascismo e totalitarismo. Algumas pessoas mais antenadas com seu tempo logo perceberam que algumas coisas estão para além do bem e do mal, e logo começaram a problematizar esta modernidade de princípios do século XX, Benjamin, Heidegger e Reich podem ser citados aqui.
Junto com esta aposta no futuro, toda uma lógica histórica estava intrínseca. Já teremos uma forte escolarização da população e desde muito tempo a disciplina de história faz parte do currículo, sempre esteve lá e parece impensável retirá-la. Pelos menos os primórdios do século XX são marcados pela fiel promessa de um futuro, é neste recorte temporal que as primeiras ficções científicas aparecem, vale lembrar. Porém tal futuro foi se mostrando ao longo de duas guerras, totalitarismos e outros episódios desagradáveis, não tão dourado como o prometido.
Um exemplo importante para pensarmos isso, é a Alemanha. O país começa o século como uma das maiores – senão a maior – potência do mundo, e ao fim da segunda guerra vê sua população expulsa de seus territórios (ver “O Tambor”) que vão ser reduzidos e entregues para outros países e ainda por cima dividida entre os dois blocos da guerra fria. Lembro da vez em que minha professora de alemão comentou de seu namorado alemão durante sua estada em Hamburgo, quando viam algum prédio antigo, ainda com marcas de bala, ou o famigerado muro, campos de concentração entre outras marcas de um passado recente, seu comentário usual era “es tut mir weh” - “isso me dói”. Seu sentimento era de dor e culpa, de forma clara, mesmo não tendo vivido boa parte do tempo em que aquelas marcas – traumas – foram feitos.
Existe uma história dos sentimentos, estes são difíceis de rastrear, não que seja impossível, mas como saber dos sentimentos de alguém no século XVII? Há formas e mais formas, a fonte não é a grande limitação. Mas depois de vivenciarmos um período tão marcado por decepções e traumas, ignorá-los se mostra até mesmo falta de educação. Até porque estes sentimentos, a exemplo do sentimento nacionalista, passa por uma construção histórica. Afinal, foi o sentimento de revanche pela Alsácia-Lorena que impulsionou a França na 1ª guerra, a sensação de ver seu país saindo de uma grave crise e retomada da antiga grandiosidade dos tempos do Kaiser que levou Hilter a ser ovacionado. O nazismo não vai deixar de usar o passado para construir um sentimento de confiança no povo alemão.
Depois de tudo que aconteceu, os alemães tiveram que mudar bastante, buscar novos desdobramentos para esta modernidade que continua ai, vai ver que é por isso que lá surgiram o krautrock, a música eletrônica, uma série de cineastas consagrados (Wim Wnders, Herzorg...) que trazem uma nova proposta estética para o cinema. Talvez, partindo destes exemplos possamos olhar melhor para esta construção dos sentimentos e o tempo histórico, alias, há pessoas que até hoje se emocionam com a figura de Getúlio Vargas, mesmo que tenha nascido depois da própria morte do então presidente. E não só na Alemanha o tempo deixou traumas, o século XX parece um grande caso psicológico, e vale lembrar, a América Latina não parece ter se entendido ainda direito com seu recente passado ditatorial, até porque ele lida com sentimentos, muito profundos para ambos os lados.

domingo, 14 de abril de 2013

Bob & Harv: dois anti-heróis americanos - Harvey Pekar; Robert Crumb


Harvey Pekar, imagino eu, vai trazer pela primeira vez o homem ordinário para os quadrinhos. Não que ele já não estivesse lá, seja no jornalista nerdzão que na verdade é um extraterrestre excepcional, ou no fotografo freelance picado por uma aranha ou alguém que sofreu mutação genética, mas os personagens de Pekar tem desafios diferentes do de vilões malvados, eles precisam de paciência para enfrentar a fila do mercado, grana para pagar o aluguel ou sorte no amor. Não há uma tentativa de suprir nossa insuficiência de vida num personagem semelhante a nós, porém dotado de uma grande virtude oculta, ele é ordinário e nada mais, tal qual somos a maior parte do tempo.
Talvez a grande distinção do romance em relação a outras abordagens literárias seja a emergência do indivíduo, não raro algumas prosas são em primeira pessoa (como Werther do Goethe), deixando bem clara essa narração do “eu”. Por alguma razão o romance se catalisa com a modernidade, não antes, justamente quando uma consciência de si enquanto indivíduo surge. O papel social não é mais o de alguém destinado a exercer alguma pretensão divina, como louvar tal deus ou servir a tal rei, mas sim a de que “eu” sou um indivíduo. Somos egocêntricos afinal.
Porém esta noção se passa por uma metáfora geográfica, onde este ser individual precisa saber onde está para se mover melhor, por isso algumas necessidades surgem, como uma constante afirmação de si, que pode ser vista nas conversas quando discutimos aquilo que é “bom gosto” (boa música, boa comida, bons filmes...) de forma geral, chegando algumas vezes a casos extremos de nacionalismos e outros pre-conceitos fascistas. Da mesma forma como um questionamento semelhante ao de Ráskolnikov, em Crime e Castigo, que está preocupado com sua extraordinariedade ou mediocridade. Ele se localiza enquanto homem ordinário, comum, padrão, e entende que coisas precisam ser feitas para superar isso, dai seu desejo assassino ser em realidade uma vontade de superação de si.
Mas o jogo correu bastante desde os séculos XVII e XVIII, nossos desafios não são mais um Czar ou um amor impossível, apesar de serem questões semelhantes, nossos desafios são o cotidiano, de forma muita mais nítida do que antes. Há uma ascensão do cotidiano, ele vem se mostrando cada vez mais um lugar de combate, havendo assim uma necessidade de superar o cotidiano. E utilizamos pra isso ferramentas, que passam desde a música e outras artes, até mesmo passando por aportes teóricos com titulação simbólica cultural mais rebuscados1. É deste homem cotidiano que fala Pekar, sujeito fora dos grandes centros, neurótico, cansado, incompreendido, comum e ordinário, até demais. E é no mesmo cotidiano, que faz dele um sujeito tão medíocre, que se busca romper tal barreira, superando-se a si mesmo – de alguma forma – como escrever quadrinhos ou blogues.
1Como citar autores de prestígio acadêmico em notas de rodapé para dar legitimidade ao discurso feito e justificar a posição social do discursador, transformando assim a fala em algo merecido de atenção e autenticidade. Para mais detalhes ver: BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas linguisticas: o que falar quer dizer. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1996.

domingo, 24 de março de 2013

A Varanda do Frangipani - Mia Couto




A memória, assim como o saber, é um objeto de poder. Sendo assim, tal objeto acaba se mostrando lugar de disputas, embates e combates. A memória é algo inventado e produzido, da mesma forma que um carro ou um projeto arquitetônico. Da mesma maneira que os dois exemplos citados, a memória é atravessada de significados, não sendo por isso um lugar “mentiroso” ou neutro. Da mesma forma que um corpo é desenterrado, a memória também o pode ser, e assim como o corpo, a memória também se transforma conforme é desterrada. E este pode ser um fantasma, um xipoco, que vaga entre nós de forma silenciosa mas nos causando calafrios.
Uma prática tão simples, como a investigação policial, acaba se mostrando carregada de mais significados do que o simples desejo de ver resolvido um mistério. Tal prática acaba se revelando portadora de uma ameaça, de um ultimato, é um pedido para que aquelas memórias esquecidas numa fortaleza abandonada, no inóspito interior de um país ignorado, aceitem seu fim e abram mão de seu passado, mesmo que este tempo não se apresente mais existente, também é confuso e impreciso. De qualquer forma, não é uma cronologia ou História (enquanto conhecimento científico) que se busca no já inexistente passado, mas sim a memória. Por isso que se entrevistam os velhos, para saber do que eles lembram e a partir disso, construir algo, no caso evidências que levariam a resolução do caso.
É com o suporte dado pela memória que os nazistas conseguiram tanto apoio popular (1ª guerra, império alemão e o kaiser, etc), é sob a égide de uma revolução da qual ninguém mais resta vivo que a França orienta boa parte de sua política e mistica cultural dentro do ocidente, é nesta memória produzida que o governo justifica o financiamento de festas (Carnavais, festa da uva, Oktoberfest, etc) e utiliza estas festas associadas a memória para obter resultados políticos – que em termos mais próximos a uma “conversa de bar”, podemos chamar de pão e circo, mas não limitemos apenas a isto.
Entretanto há coisas que não se quer esquecer. As pessoas não aceitam ordens contra a sua vontade. Ninguém é obrigado a nada e aceitamos porque queremos ou, no momento tal opção se mostra conveniente. Neste sentido negociamos de alguma forma com a “proposta” a nós ordenada. Desta forma os idosos do asilo dão, ao longo da narrativa, suas respostas ao que Izidine faz na fortaleza. No fundo brincam com ele, já que este é um estrangeiro. Não aceitam de prontidão que algum bárbaro, que gagueja e não fala a língua, tente brincar com sua memória, por isso usam da própria matéria-prima para brincar com ele, confundi-lo ou até mesmo rir. Sabem, portanto, que memória não é, mas constitui a parte mais atuante da história, já que partindo dela é que se inventa o passado.
No movimento de desenterrar as coisas e rememorar, a trama se desenrola, e junto com toda esta rememoração uma série de questões se propõem, todas elas, da mesma forma que o fantasma, tem seu lugar no passado.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Estética da Ginga - Paola Berenstein Jacques

      
Várias vezes Lucien Febvre usará a expressão “combates pela história”, mesmo que esta frase seja pouco clara ela indica que o francês sabia muito bem dos jogos de poder em que a História está inserida e faz parte – independente de sua vontade. De alguma forma acredito que um dos nossos desafios contemporâneos dentro da sociedade brasileira seriam “combates pela cidade”. Moramos em cidades péssimas, e neste quesito nada melhor do que a copa para ilustrar isto. Não podemos fugir de nossa história, negar nosso passado é tão difícil quanto fugir do saudosismo. Sobre este problema urbano que nossa realidade concreta nos impõe, a teoria rizomática pode ajudar muito.
De maneira geral e resumida, as cidades brasileiras não passaram pelo rígido esquema de quadras de nossos vizinhos colonizados por espanhóis. Quando observamos esta grade nas cidades coloniais, percebemos que a rigidez é outra, Paraty não é tão geométrica como Colonia del Sacramento, mesmo que nossa percepção indique que ambas seguem um mesmo “plano diretor”. O que ocorre é que nossa geografia e constituição também é outra.
O grande roteiro das reformas urbanas no Brasil (muitas vezes ainda) seguem o estilo do “bota abaixo”, ou da demolição do cabeça de porco, episódios já bem documentos que ocorreram no Rio de Janeiro – então capital do país[i]. O plano é simples, a constituição presente da cidade não atente os desejos de modernidade da época, então destroem todo e refazem a cidade, seguindo um plano de forte inspiração (e cópia) europeia. Neste sentido os grandes alvos são os cortiços, e logo em seguida as favelas.
Não há cidade no Brasil que não possua uma favela ou algo que se assemelhe a isto. No geral chamamos de favela lugares onde as habitações apresentam inúmeros problemas habitacionais como: mobilidade, saneamento, desmoronamento... Sabemos e não negamos que as favelas apresentam problemas de urbanidade. Porém o interessante é observar que durante anos o modelo seguido é um puro fascismo urbanistico, não abrindo mão de tratores para demolir tudo que está ali e reconstruir novamente algo o mais próximo possível de ideais iluministas/cartesianos. Nisto ainda somos reféns das quadras.
O rizoma ajuda a combater este fascismo urbanista, nos faz compreender de que não precisamos destruir uma favela para torná-la aprazível. Nos ajuda a entender que a favela é uma constituição diferente de urbanidade e para lidar com ela não precisamos destruí-la, mas sim compreende-la e aceita-la. E querendo ou não as cidades brasileiras se constituem de forma muito mais semelhante (e rizomática) as favelas do que ao rígido e geométrico plano de quadras. Esta é nossa realidade, não por acaso foi aqui que o conceito de bricolage ganhou forma, parece que esquecemos disto.



[i]  Para mais detalhes recomendo ver: CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortiços e epidemias na Corte Imperial. São Paulo: companhia das Letras, 1996.