sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Hakim Bey - Milênio, Por e contra a interpretação, Religião e revolução, Notas sobre o nacionalismo


Faz algum tempo a esquerda de maneira geral passa por um forte questionamento, tanto interno quanto externo. Ocorre que com o fim da URSS acabou ficando no ar uma vitória do capitalismo liberal, de fim de século inesperado. Pareceu então que o capitalismo havia vencido e era o único caminho possível. Não por acaso, os anos 1990 são acompanhados de uma série de privatizações, no caso da América Latina se buscou seguir a cartilha da escola de Chicago que teve uma de suas primeiras experiências durante o governo ditatorial de Augusto Pinochet. Muitos defensores do regime ditatorial de Pinochet e do neoliberalismo vão apontar para o fato de que o PIB chileno aumentou durante o governo militar, mas não podemos esquecer que não houve uma distribuição de renda, ocorrendo justamente o contrário, havendo um aumento das diferenças sociais, isso sem contar no saldo de mortos por um regime assassino.
É durante os anos 90 que vamos perceber um avanço maciço deste capitalismo neoliberal e de um novo termo: globalização. Fazendo parecer com que globalizado e moderno soassem iguais, um país que não estava no eixo da globalização estaria fadado ao fracasso, dai que ocorreu um esforço gigante para que este processo ocorresse, e praticamente não nos demos conta na época de que esta globalização não passava de um nome bonito para um capitalismo sem fronteiras e muito mais agressivo e atuante. Com o fim da URSS o Estado deixou de ser o grande inimigo, e o capital passou a controlar o Estado – ou melhor, oficializou esta mudança. Vale recordar que temos inúmeras empresas e conglomerados que ultrapassam em muito as riquezas de vários países.
Havendo uma mudança do quadro as estratégias precisam mudar, o foco deve ser outro. Esta talvez seja a maior contribuição de Hakim Bey, nos alertar para algo tão óbvio, novas posturas e estratégias para novos tempos. Apesar da propaganda colocar a globalização (e consequentemente o capitalismo) como um produto aceito e desejado por todos, temos várias expressões não ligadas a visão tradicional que existe da esquerda, que de uma forma ou de outra rejeitam esta dominação global. O exemplo mais claro disso é o islamismo e seus grupos ligados a essa religião. Apesar de não ficar claro no discurso, podemos perceber que há na adoção prática dos islamismo uma forma de rejeitar este novo mundo globalizado (e ocidentalizado) que pretende estar em todos os lugares. Da mesma forma setores da Igreja católica percebem que vivemos num mundo cada vez menos místico a medida que o capitalismo se renova e ganha cada vez mais espaço, sobrando menos tempo e atenção para um lado espiritual, diminuindo cada vez mais o número de fiéis nas igrejas. Os índios brasileiros estão há anos buscando sobreviver com sua estrutura social distinta e ausente de Estado. Apesar de não termos algo que podemos chamar de “consciência revolucionária” ou classificarmos algum destes exemplos do que seria a esquerda, vários grupos acabam resistindo, direta ou indiretamente, consciente ou inconscientemente, a esta globalização. Notem que não se restringe aos black blocs.
Devemos claro, tomar cuidado para não cairmos num fundamentalismo islâmico ou algum desejo conservador nostálgico, o que temos de maneira bem clara é o quanto o fim da União Soviética acabou com o monopólio da oposição ao capitalismo, e devemos aproveitar isto. Neste sentido há cada vez mais novas formas de luta. Apesar de nos últimos anos o capitalismo procurar dar conta de várias carências materiais, a exemplo do que ocorreu no Brasil nestes últimos anos, ainda temos as pessoas morando em favelas, faltando água potável, com hábitos cotidianos péssimos somados a uma terrível alimentação (sódio/açúcar em altas quantidades), segregação social (vide os “rolezinhos”), diferenças e problemas que estão muito mais ligados a uma questão cultural do que material, mas ainda assim provocados por um modelo capitalista de sociedade. Apesar do capitalismo ter garantido comida para muita gente, a qualidade de vida não está melhor, muitas vezes até piorou. Precisamos analisar o capitalismo hoje de maneira atual, e por mais genial que Karl Marx possa ser, a muitas vezes ele não servirá.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Curso de Linguística Geral - Ferdinand de Saussure


Algo muito particular a condição humana é a linguagem. Não somos os únicos detentores a possuí-la, podemos observar a linguagem entre outros animais, porém o peso da linguagem para o Homem é outro. Mais do que isso, também utilizamos a linguagem para transmitir mais coisas do que aquelas que os olhos podem ver. Nossa capacidade linguística é diferente devido a nossa abstração. É regra geral ao ser humano sua abstração e linguagem. A abstração nos possibilita o pensamento, a linguagem nos possibilita trabalhar sobre este pensamento. Ao se estudar o homem, a linguística deve estar ali, é uma parte de seu meio.
É cada vez mais comum nos estudos humanos, ser levado em consideração a linguística, seja na sociologia, filosofia ou história. Estas ciências enquanto ocupadas do homem, se ocupam também de suas relações, e é por meio das palavras que elas ocorrem. Os significados estão nas palavras, mudando seu sentido em diferentes culturas. É necessário medi-las quando se conversa com alguém.
Ferdinand de Saussure parece ter sido um linguista muito particular de seu tempo. O curioso entretanto é que este livro não foi escrito por ele, o que temos são anotações de suas aulas organizadas e editadas, procurando transmitir seus ensinamentos para a posteridade. Segundo tudo indica, ele se mostrava um sujeito inovador dentro do campo linguístico de sua época. Ao longo do livro podemos perceber que ele consegue dialogar muito bem com um lado mais tradicional da linguística, onde se está mais ligado a gramática, quanto a um campo mais aberto, que trata das relações do Homem com a linguagem. Esta última parte é para os não linguistas a parte mais vital.
Quando se toma um contato primário com os estudos da linguagem, é comum alguma confusão, pois ela é algo muito escorregadio, após ditas as palavras se vão e mesmo se repetidas, cada vez que se escuta, atos como a entonação, as gesticulações ou até mesmo a ocasião podem trazer novos significados. Talvez por isso seja tão complicado para um acadêmico lidar com a linguística nos seus primeiros semestres, por mais interessante que pareça. Neste sentido uma obra que aborde o caráter geral seja muito válida.
Há vários cursos gerais de linguística, de variados autores, porém a escolha por Saussure se dá pelo estruturalismo. Esta coisa chamada estruturalismo parece iniciar no campo linguístico e Saussure é apontado como o patrono (junto com Marx), entretanto não se pode afirmar que Saussure seja um estruturalista. Ao se estudar uma língua estrangeira se percebe que a estrutura da frase muda. Quanto mais diferente a língua, maiores diferenças na estrutura. Partindo dai, podemos entender que cada sociedade, tal qual suas diferenças linguísticas, muda em relação a outra.
O que chama atenção em Saussure no seu curso é a sua atenção em relação a linguagem e o Homem. Não é dado ao ser humano algum mérito especial pela linguagem, como ele coloca “não está provado que a função da linguagem, tal como ela se manifesta quando falamos, seja inteiramente natural, isto é: que nosso aparelho vocal tenha sido feito para falar, assim como nossas pernas para andar”1. A linguagem é portadora de ideias, que se transformam junto com a linguagem. Esta linguagem é constituída por mais do que as palavras. A imagem também é constituidora de pensamento, Benjamin já nos alertou sobre isso. A linguagem se confunde com o pensamento.
 
1SAUSSURE, Ferdinand. Curso de linguística geral. São Paulo: editora Cultrix ltda, 1975, p. 17.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

O Pagamento - Philip K. Dick


As histórias de Philip K. Dick trazem mais do que simples aventuras, há questões sendo trabalhadas ali. Parece que hoje em dia o gênero se resumiu a receita de filmes como Star Wars ou Star Trek. Não desenvolvendo questões mais profundas do que a luta do Bem contra o Mal no meio de “muita aventura”. Diverte, é legal, mas pouco traz de novo. Stanislaw Lem, autor de Solaris, já percebia isto durante os anos 1970 e por isso acabou largando ao longo do tempo a ficção científica e se decepcionando com o que ela poderia se tornar. Talvez pelo fato das histórias pouco comuns de Dick, ele não parece ser um autor muito lido entre os brasileiros, apenas pessoas que querem ir além dos clássicos 1984, Fahrenheit 486 e Admirável Mundo Novo.
Há também o fato de que Philip K. Dick é o autor com o maior número de roteiros adaptados para o cinema. Os filmes adaptados a partir de histórias do Dick são variados, como está na chamada da capa deste livro, temos “O Pagamento” e “Minority Report: a nova lei”, porém clássicos como Blade Runner e filmes com atores tão ilustres quanto Arnold Schwarznegger fazem parte deste confuso mosaico. O que rola sempre, independente da qualidade da adaptação – ou atuação – é que suas histórias são mais do que uma aventura. Philip Dick cursou filosofia, e mesmo sem ter terminado seu curso, isto parece significar algo.
O curioso deste livro encontrado num sebo é a quantidade de contos, que acredito eram até então em sua maioria inéditos no Brasil, estes contos possuem abordagem variada. Infelizmente não houve um cuidado em indicar o ano da publicação desses contos, o que pode ser esperar muito de um livro com vários erros de grafia e digitação – supostamente aproveitaram a onda de algum filme para lançar algo que estava na gaveta e possivelmente não daria nenhum lucro sem a existência do cinema.
Um elemento notável é que a ficção científica não está preocupada com o futuro, mas sim com o seu presente. Em 1984 a preocupação é com o totalitarismo, em Fahrenheit é o abandono do hábito de leitura em detrimento da popularização da televisão e em Admirável Mundo Novo percebemos uma preocupação com uma rápida modernização da sociedade, destruidora de coisas também tão bonitas quanto o moderno. Em muitos contos contidos aqui está no ar uma eminente guerra que pode destruir todo o planeta. Ora, Dick começou a publicar durante a Guerra Fria e tanto URSS quanto EUA tinham (tem) poder de fogo para destruir o planeta Terra mais de uma vez. Esta constante ameaça de guerra está nos seus contos, uma visão pessimista do futuro a partir do presente que se vive. A ciência acaba sendo o campo de descoberta e meio termo entre a destruição e a esperança, afinal é devido a uma máquina do tempo que se pode roubar os planos secretos de algum cientista que desenvolverá alguma arma muito poderosa no futuro.
Entretanto resumir seus contos a esta tensão existente na época, não impediu Philip Dick de escrever sobre outros temas. Uma colocação que já está mais evidente em seu romance Os três estigmas de Palmer Eldricht, é sobre a tal da vida mundana. Provavelmente após a declaração de Stanislaw Lem de que Dick era na época o único escritor estadunidense ativo louvável de ficção científica, o americano escutou a crítica do polonês de que quando muito a ficção científica abordava no máximo a problemática da Guerra Fria. Por isso percebesse que o americano foca em sua realidade e a guerra destruidora começa a perder espaço para a dominação de empresas e o tédio da vida cotidiana – tudo isto com a desolação do planeta, seja por uma guerra ou seja por alguma catástrofe ambiental ao fundo, não podemos esquecer. A vida se torna um produto, ou uma forma de obter lucro. Assim que temos o momento chamado de pós-guerra, a população do mundo inteiro começará a ter um acesso cada vez maior a bens de consumo antes impensáveis como: automóvel, televisão, aspirador, liquidificador, geladeira, ar condicionado, micro-ondas, shampoo, preservativos, comida industrializada (congelada). A partir de todo este acesso, ocorreu uma adoração a certos bens ou marcas, os produtos vão ganhar personalidade. É partindo dai que várias vezes os personagens de Dick fazem de tudo para conseguir algum produto, seja ele uma boneca, tabuleiro ou droga.
O conto mais forte talvez seja o do sujeito aficionado por seu trenzinho no porão, o que ele deseja é uma fuga. Ao mesmo tempo sua mulher quer alcançar o modo de vida ilustrado em propagandas ostentar felicidade mais do que usufruir dela. Ele odeia seu emprego, a cidade e sua vida. Em sua maquete por onde passeia o trem ele pode reconstruir da forma que mais lhe apetece, podendo ter alguma escolha para si que seja maior do que trabalhar e ter seus valorosos finais de semana passeando em algum carro até algum resort caro. Ou talvez só queira voltar para sua infância, quando as pessoas pouco se importavam com ele. De qualquer forma, o que temos é um questionamento da realidade que se vive mais do que da realidade possível de uma guerra eminente entre dois superblocos. Nestes últimos contos do livro este tipo de roteiro se torna mais recorrente, e podemos perceber uma obra mais madura de Philip K. Dick, um dos maiores escritores de ficção científica, sem sombra de dúvida.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Persépolis - Marjane Satrapi


O primeiro preconceito que devemos perder ao estudar a História do Oriente é descermos de nosso degrau eurocentrista. Querendo ou não, pouco sabemos a respeito “do lado de lá” do meridiano de Greenwich. A primeira coisa é que o Irã não é árabe e sim persa. São persas, que tal qual os turcos e os negros subsaarianos, foram “arabizados”, recebendo uma forte parcela de influência árabe na sua cultura, nesse processo de mistura e mudança cultural a religião veio junto: o islamismo.
Ocorre que a história cerceia as sociedades, e por isso não podemos ignorá-la, sempre estará marcando presença, a introdução da obra com tópicos históricos importantes sobre a história da Pérsia/Irã deixam isso claro. Nisto se olharmos a história do Irã podemos ficar chocados, especialmente se levarmos em conta o modo de vida da família de Satrapi. O Irã parecia ser um país relativamente liberalizado dentro do Oriente Médio, porém conseguiu se revelar uma grande decepção após sua revolução islâmica – apesar de talvez ser a revolução menos ligada ao ideal de liberdade, igualdade e fraternidade, o que faz dela algo original. O que nos choca é que temos um ponto de vista positivista e acreditamos que as coisas sempre progridem e melhoram conforme o tempo evolui. O presente virar passado não garante melhora alguma. O Irã, o Afeganistão e as ditaduras que assolaram a América Latina são uma mostra de como este nosso senso de que a história sempre “evolui” não passa de uma teoria furada. A visão de uma linha reta ascendente para o progresso talvez não fazia sentido nem para Leopold von Ranke. Mas independente da historiografia existente, esta ideia de que se progride na marcha da história está muito bem marcada em nosso pensamento cotidiano.
E aqui fica meu espanto, se ocorreu isto no Irã, um país do chamado terceiro mundo, o que impede de que tal movimento ocorra em outros lugares como o Brasil?
Podemos nos seduzir pela interpretação comum de que os problemas ilustrados em Persépolis ocorrem devido a religiosidade islâmica. A autora do livro é genial ao deixar claro que não possui o menor embaraço em ser iraniana, sua fuga foi pelo simples fato das coisas não estarem bem, uma guerra nos convence fácil disso. Até porque no começo da obra fica clara a crença da família Satrapi no islamismo, apesar de seu caráter secular. Apesar de clichê e parecer um discurso do professor Xavier dos X-men, a convivência pacífica é ainda uma solução muito tentadora, e no caso de Persépolis o que se pede não é o fim do islamismo ou da “opressora cultura persa”, mas sim de que não se busque impor nada as pessoas, como no caso das mulheres usarem o véu obrigatoriamente enquanto andam na rua, correndo o risco de serem presas. Por mais significados e justificativas contidos no uso do véu, algumas vezes pode fazer muito calor e ele ser incômodo, mais nada.
Ocorre que podemos entender que muitos problemas no Irã foram causados pelo imperialismo, a constante disputa entre países por recursos e influência, isto fez com que muita gente metesse o bedelho onde não era chamado e atrapalhando (muito!) as coisas. O grande mérito afinal, da revolução iraniana de 1979 é procurar fugir desta influência externa, isto contudo, não apaga nenhuma mancha de sangue e nem dá mérito eterno a ninguém. E por isso fiquei tão encantado com Persépolis, já que ali se trata do Irã contemporâneo sem retratar um país de bárbaros incivilizados e incultos, mesmo sendo a autora de um nível social extremamente elitizado.