sexta-feira, 4 de maio de 2012

Medianeras - Gustavo Taretto (dir)

     O filme toca num ponto crucial, a vida na cidade. Acredito que pouco pensamos em como é viver na cidade, simplesmente vamos tratando nosso cotidiano como algo simples e perfeitamente imutável. Até porque a relação mudança-tempo acaba favorecendo esta não percepção, que só se origina junto a alguma análise. A maior fatia absoluta de boa parte do mundo vive em cidades. Ao término da Segunda Guerra a maior fatia da população ocidental (Europa e Américas) vivia no campo, para chegarmos ao fim do século XX já com a maior parcela vivendo nas cidades, seja em pequenos apartamentos ou favelas. Sempre me utilizo destes dados e do simplismo para defender a importância do estudo das cidades. De qualquer forma minha escolarização inculcou-me que, se se pretende mudar algo, é necessário saber sobre isso.
     O quadro argentino é um pouco peculiar, pois parece que só existe Buenos Aires naquele país enorme (o segundo maior da América latina), sensação não só para nós estrangeiros, como acredito que de alguma forma para os argentinos. Há uma dependência e um foco muito grande sob Buenos Aires. Apesar da cidade estar constituída rigidamente sobre quadras (algo que eu sempre estranho), há um certo caos urbano. Em resumo, como em praticamente todas as cidades que conheço, falta planejamento urbano. Arranha-céus não deixam de surgir, o que em minha pobre opinião, só piora a situação de qualquer cidade.
     Interessante é como o filme procura dar certa vida a estes prédios, pensando-os em algo mais do que um simples lugar para ficar ou passar. Até porque a arquitetura terá um papel importante no filme. Não necessariamente de forma direta ou por padrões estéticos, mas construções estão ali quase como personagens. Elas são apresentadas e explicadas, deixando clara sua importância.
     O curioso é que uma das causas apontadas para um certo afastamento entre as pessoas e má qualidade de vida, é o péssimo planejamento urbano (planificación, em espanhol). Porém é rompendo com algum elemento deste planejamento que as coisas começam a se mostrar mais palatáveis. Talvez ai resida um ponto importante, romper ou esticar estes limites cotidianos podem nos ajudar. A exemplo da favela, que traz uma série de problemas advindos da sua ausência de urbanista, porém ao nos depararmos com ela de maneira mais demorada, podemos perceber que a relação é outra. E assim sendo suas limitações e possibilidades acabam sendo diferentes das que teremos numa cidade altamente planejada.
    O filme é bom para pensarmos nossa vida moderna atual. Através de toda a impessoalidade, da forte presença do computador, da cidade e arquitetura, acaba sintetizando de uma forma muito bonita (ah que fotografia!) um pouco do padrão desta vida moderna feita tão chocha e sem graça. Não hesitando em mostrar como relação são mediadas por computadores e outros meios eletrônicos. Por isso algo mais efetivo se desenrola no momento em que tais meios hoje tão comuns, estão impossibilitados de funcionar (um apagão).
Mas o grande mérito não está apenas no lado crítico e analítico do filme, mas sim na sua ausência de saudosismo. O desejo por uma volta a Buenos Aires da década de 1940-50, presente em muitos argentinos, não está ali. O desejo saudosista não se faz presente, o filme conduz uma narrativa por meio de problemas e questões atuais, sem esquecer de seu tempo. As poucas referências a um passado idealizado dão margem para isso. Gosto do fato de ser apontado como grande meio os imprevistos, as desfuncionalidades (apagão) ou até mesmo contornos e desprezo por regras tão rígidas como a das medianeras, sempre pálidas ou publicitárias. A janela que se abre é mais do que uma simples metáfora, até porque o diretor não decidiu gastar tanto tempo trazendo a arquitetura à tona para nada.




sexta-feira, 27 de abril de 2012

Nascimento da Biopolítica - Michel Foucault

Os cursos ministrados por Michel Foucault no Collège de France dão margem para uma série de questões. Apesar de percebermos ao longo da leitura das aulas que há um objetivo em foco, as aberturas sempre são possíveis. O que estamos lendo são as transcrições de gravações destes cursos, e assim sendo estamos lendo a fala de um sujeito, não a sua escrita. Notavelmente as aulas são menos rebuscadas que os textos. Algo simples de compreender, tanto pelas diferentes propostas (escutar ou ler), como pelo tempo dedicado a textos e a falas. Porém não podemos nos iludir de que tais aulas eram pouco preparadas.
      Pela razão da fala, a dispersão, voltas e delongas são lugares comuns. Percebemos isto ao prestar atenção numa conversa ou até mesmo quando ouvimos uma gravação nossa enquanto falamos com alguém. Percebendo assim, as particularidades da fala. Não bastasse, a densidade das aulas colabora para essa gama de possibilidades que sinto presente nos livros-cursos de Foucault.
     No resumo do curso, Foucault deixa claro que o curso “acabou sendo inteiramente consagrado ao que devia formar apenas sua introdução”¹. Sua preocupação era com o governo das populações viventes, questão já anunciada no curso anterior, Segurança, Território, População. Apesar de não entrar na Biopolítica de forma constante, o curso ai preparar a introdução para o assunto, que será fundamental para os desenvolvimentos seguintes de Foucault.
     Desde que assisti uma palestra que buscava debater a apresentar esta problemática da Biopolítica, me interesso pelo assunto. Percebo nesta questão algo fundamental de nosso tempo. O quanto há uma série de intervenções em prol da manutenção da vida biológica (estar vivo, não necessariamente viver). Há uma série de investimentos e intervenções realizadas no abrigo deste desejo. E penso eu, esta seria uma das partes mais interessantes de Foucault e ainda pouco explorado. Penso isso pela atenção dada à Vigiar e punir.
     É interessante como a economia se mostra enquanto elemento constante neste curso. Sua intenção é analisar questões de governo, mas percebe-se que em determinado ponto a economia, o governo (enquanto técnica, não instituição) e a vida estão relacionados de maneira complexa e cotidiana. Conforme minha leitura do curso se desenvolvia, observava como os economistas ocupam lugar de importância dentro do Estado. Como governantes estão atrelados a muitos economistas. Vide uma das declarações de Lula ao deixar a presidência, coberto de elogios, afirmando que desejava era ser economista. Ou até mesmo a importância das figuras de Guido Mantega e Delfim Neto.
     A relação não para por ai. Tal área do conhecimento acaba servindo também como grande legitimador, ou não, de um governo. Boa parte absoluta das críticas a regimes autointitulados de comunistas se baseiam por quesitos econômicos. A crise econômica Soviética é comumente apontada como elemento chave do “fim do comunismo”. Não por acaso há uma observação de Mises para explicar sua descrença no socialismo que é mais ou menos a seguinte: “só sei que a média dos cidadãos estadunidenses tem uma renda maior do que a média de cidadãos soviéticos”. Assim como o quesito para a grande maioria da população sobre um governante estar ligado a questões econômicas: inflação, empregos, PIB, potencial de compra...
     Ao tocar neste processo de construção da economia liberal, adentramos pontos sólidos de nossas convicções, até porque estes argumentos econômicos muito nos convencem. E até mesmo a União Soviética, então existente durante a execução do curso, mesmo se colocando como oposição ao capitalismo, buscava sua legitimidade por meio de uma “boa” economia.
     Toda esta ânsia cerceada pela economia, é acompanhada de projetos de sociedade. Um dos termos constantemente utilizados é Gesellschaftspolitik, que numa tradução livre seria: “política social”². Isto me lembra a observação de Delfim Neto a respeito da colocação do Brasil como sexto maior PIB e por isso sexta maior economia do mundo, de que não adianta termos o maior PIB se não possuirmos um projeto de civilização, não adianta fazer como a China que está no topo do ranking, mas que tem sua população em ritmo de trabalho escravo. E esta observação é feita de alguma forma nos mais variados elementos da mídia, ou na fala das pessoas no dia a dia, há uma vontade por este projeto social, muitas vezes inspirado de alguma forma no modelo ordoliberal alemão. Para arrematar esta questão por aqui e encerrar à força a possibilidade que se abria, dentro do liberalismo o que conduz o projeto de sociedade é a economia. Sendo assim, é perfeitamente cabível nossa crença de que o enriquecimento econômico acaba dando cabo a esta empreitada de alguma Gesselschaftpolitik. E nosso espanto se faz quando percebemos este enriquecimento, sem contudo haver uma significativa melhora de nossa vida.



¹ p.431
² Gesellschaft seria sociedade e Politik seria política. Temos assim uma política do social, que pensa o social, a sociedade.

terça-feira, 17 de abril de 2012

Hiroshima meu amor - Alain Resnais

     É difícil compreender o que fora o fantasma da guerra para a geração que sobreviveu e veio logo depois. Tal trauma me parece um dos pontos chaves de uma série de elementos do pós-guerra, seja a guerra fria, o crescimento econômico ou até mesmo o ano de 1968. Esquecemos que o único ataque nuclear fora realizado pelos EUA nos tristes episódios de Hiroshima e Nagasaki. As cenas iniciais do filme ilustrando o museu da bomba em Hiroshima só reforçam o horror que já supúnhamos. A bicicleta retorcida e as peles queimadas causam espanto. Vendo isto dá para entender porque, na Alemanha dos ano 1980 o pacifismo era tão forte, bombas não são legais, não importa a cor.
     Não sei porque mas constantemente recordava de uma série de escritos de Kawabata, em especial os Contos da palma da mão, onde os anos circundantes a guerra aparecem constantemente. O japonês é um remanescente da população universitária pré-guerra, acostumado a tensa rotina de estudos. E entre tantas coisas para se estudar havia a língua estrangeira, dai seu francês. É um sujeito bem sucedido, como o personagem de Mil Tsurus (também um remanescente universitário do pós-guerra), ambos já bem encaminhados a uma ocidentalização (e conscientes disso). Enquanto a francesa faz a vez da pobre camponesa francesa traumatizada. Revelando uma França ainda muito concentrada no campo, dos quais creio eu que nunca fui ate lá, ainda são parte importante do país.
     O envolvimento de ambos gira sempre em torno de suas memórias, seu passado, e o grande desespero é saberem que mais tarde vão esquecer. O esforço para não esquecer é muito grande. Por isso o museu, os monumentos e até mesmo todo o turismo em torno do ataque atômico. Como pode uma história de amor rodeada pela explosão de uma bomba atômica ser tão bonita? Como quebramos a cara ao sentir compaixão pelo amor de uma francesa pelo soldado nazista? A guerra fora o grande trauma, apesar do esquecimento. E todos os acontecimentos que giram ao redor desta guerra acabam reforçando o pedido para não esquecer, ou para uma aceitação do esquecimento.
     Imagino que ao mesmo tempo que doía esquecer, tal falta de memória se faz necessária para sobreviver, até porque se torna duro viver amargurado. É comum entre as pessoas que passaram por alguma experiência traumática (guerras, campos de concentração...) esquecer e evitar o assunto. No caso de Hiroshima moun amour o difícil é aceitar o esquecimento de algo que fora tão prazeroso. A vontade de não abandonar a cidade com o receio de perder suas memórias. E junto com elas a lembraças de que um dia amou.
     Constantemente o que ronda é o fantasma da bomba, da guerra e do esquecimento. Talvez Resnais faça no meio desta trama um pedido para que não se esqueça, as fotos e a silenciosa passeata parecem pedir por isso. O que é bacana pensar pois se entende segunda guerra até hoje como os bonzinhos contra os malvados nazistas, sendo que toda uma série de atrocidades ficassem esquecidas.
     Mas também não se pode afirmar que o filme condene as pessoas pelo esquecimento, a lamentação delas não parece indicar isto. Talvez o filme seja bom para nos lembrar que esquecemos, mesmo traumas (marcas) tão profundos, coisas que tanto nos fizeram viver ou desejar a morte. O trabalho de lembrar algo é muito complicado, pode ser doloroso, como as lágrimas daquela francesa chorando a morte de seu soldado alemão.


terça-feira, 20 de março de 2012

O chefão - Mario Puzo

     Geralmente não gosto de falar sobre algo em que todos estão falando, ou fazer posts em homenagem, mas como por mero acaso li o livro do filme a pouco tempo, assim como há tempos desejava escrever algo sobre a fatídica história, publico esta resenha tosca. Diferenças entre o livro e o filme ficarão de lado, dois clichês já são demais.
     Mario Puzo intentava ser escritor já fazia algum tempo, sem contudo lograr êxito. Sua magnun opus acabou se tornando “O Chefão”. O livro alcançou grande sucesso na época, o que mais tarde ocasionou o filme. A história é densa, Puzo consegue passear por entre os personagens, alternando quem é o principal, não havendo tão tradicional figura de forma fixa. Exceto Tom Hagen que se mantém constantemente coadjuvante, porém presente, o que creio, colabora para sua figura de “Consigliori”.
     O que me impressiona é o conhecimento de Puzo sobre este ambiente. Apesar de ter-se rendido a fórmulas do mercado ao construir a obra, alguns elementos destoantes do senso comum aparecem. Sempre considerei a tradução do título péssima. O padrinho se revela um bom título, pois revela muito do ar da obra. A mística de Don Corleone está no fato de ele cuidar das pessoas, negociar com elas, não impor coisas a elas, mas sim convencê-las de que devem fazer algo, o que vai ficando claro pelos laços criados de amizade e por meio dos favores. Por isso Don Corleone é um Padrinho e não um chefe, pois estes últimos mandam, enquanto o padrinho argumenta.
     E essa argumentação, ou até mesmo a Omerta, vão nos levando a compreender a lógica por trás da máfia, que não vai se resumir a simples bandidos. Por isso o Don se sentira tão ofendido no momento em que Ameringo Bonaserra lhe pede para matar, sua organização não era de ladrões e assassinos. A feição da família pelo Don e sua esperteza vão nos cativando, nos levando até mesmo a pensar como Kay num dado momento do livro: “como podem falar coisas horríveis de um homem tão bom?”.
     A questão da amizade é crucial ao longo do desenrolar do livro, pois é graças a elas que o Don terá sua influência, é graças aos favores que a família Corleone terá políticos, policiais, juízes e outros, a seu favor. A amizade aqui acaba se revelando um mecanismo de controle, sem contudo parecer um.
     Sempre analisei a figura de Don Corleone como dentro da mitologia do self made man. Gosto do fato de Puzo colocar que junto com os negócios ilícitos das famílias, negócios lícitos acompanhavam. O que me remete as atuais discussões sobre corrupção, que acabam tendo como parâmetro a questão legal. O livro nos mostra que nem tudo que é legal está dentro da lei, por assim dizer.
     Desde que li o livro venho observando como esta cosa nostra acaba sendo uma forma de organização social que haverá num dado momento na sicília, e que mais tarde vai ser importada para os EUA, e conforme o mundo muda, vai ganhando contornos maiores de negócios e forma de ganhar dinheiro.
     Gosto o fato do livro não olhar com desprezo nem cheio de amores para os personagens. Acredito que Puzo não fica falando besteiras completas sobre mafiosos, como sempre é fácil fazer, mas fala com propriedade sobre eles. Agora eu gostaria de saber se Mario Puzo estudou sobre isso através de livros, ou se ele sacou tudo isso durante sua infância num bairro de fama em Nova York, o Hells Kitchen?