domingo, 4 de junho de 2017

Trapaça - Marcelo Labes

 
Quando falamos uma palavra, mais do que desejar transmitir um significado a invocamos pedindo para que se faça presente. Falar é mais do que mero jogo de significados. Falar é algo vital para o ser humano. É na fala que nos relacionamos com a língua. E a língua fica na boca. Entendendo isto, podemos reconhecer o grande mérito da poesia: evocar uma palavra como se fosse a primeira vez.
O maravilhoso da poesia é seu caráter de oralidade, é por isso que através dela nossa relação com a língua mais se desperta. Ler poesia traduzida é um sacrilégio. Não se traduz poesia da mesma forma que não se traduz nome próprio. O próprio não tem comparação, muito menos tradução. Desta forma, a poesia carrega uma língua inteira em seus versos e, do poeta, se espera que consiga fazer bom uso da língua colocando seus versos em palavras familiares que soem como se nunca escutadas antes.
A forma mais primitiva de literatura é, sem margem para dúvidas, a mais complexa. Inventamos a poesia para decorar, como já não precisamos mais decorar desde a popularização do papel e do livro, como fazer poesia? É disto que trata Trapaça, dos puxões de tapete e rasteiras inesperadas que a vida nos proporciona. Cabe a um poeta hoje se perguntar, por quê escrever versos quando eles não são mais necessários para a memória? Ao revés de previsões alarmistas, lemos e escrevemos em intensidade não só cada vez maior, como também jamais imaginada. Nisto tudo como fica a oralidade, a poesia e a língua? Como dizer algo que soe novidade, utilizando palavras gastas?
Arremessados num mundo sob o qual não temos controle, uma infinidade de variáveis se põem em objetivos que em dado momento eram claros. O poema aqui não é sobre aquilo que não existe, ou seja, algum ser inimaginável e inalcançável. Não é uma ode a algum sujeito mais indivíduo que os outros. Nem sobre uma paixão mais ardente que as outras. Muito menos sobre o sujeito de classe média que carrega as angústias do mundo inteiro dentro de si. Nada disto é real o suficiente para nos tocar, e assim as palavras soam vazias, gastas e repetidas. Os versos tratam da pessoa inserida no limite entre a civilização e a barbárie, do banho de rio e da fumaça do ônibus, da solidão e da tevê.
Num tempo em que não se precisa mais decorar, a poesia deve ser outra. Manter seu esforço de ser a palavra dita pela primeira vez, mesmo que ela seja familiar. Num tempo em que se escreve e lê cada vez mais, a língua continua. Falamos, berramos. Isto não vai deixar de acontecer. Nos relacionamos com a língua, e ela a sua maneira se relaciona com a gente, nos produzindo uma forma de pensar e ver o mundo. Se a língua ainda existe, a poesia também vai existir, cabe a ela enamorar-se de pessoas que compreendam seu tempo e sua língua. E sobre isso, é muito bom saber que tem gente produzindo coisas assim em português.


Um comentário: