O grande mérito da ficção científica é conseguir gerar
reflexões. Geralmente tratam de questões presentes jogadas num
tempo futuro, seja os totalitarismos em 1984 ou o
enfraquecimento do hábito da leitura em Fahrenheit. Nem toda
ficção científica vai por este caminho, apesar de adorar Star
Wars, não temos ali muito mais
do que uma aventura. Ray Bradbury é um dos mestres do gênero
literário, está lá no panteão reservado a poucos autores e
Crônicas Marcianas é
um de seus clássicos.
O livro utiliza uma estética
narrativa independente de personagens principais, e num formato de
diário, contando episódios esporádicos que vão se interligando. A
obra gira em torno do planeta marte. Creio que na época da escrita
do livro, temos as primeiras sondas sendo enviadas sistema solar
adentro, e as especulações sobre o espaço em alta, algo muito
parecido com os contos de Philip K. Dick em O pagamento.
Por isso podemos perceber no livro uma constante polaridade, já que
o entusiasmo da exploração espacial trazia de carona a bipolaridade
e o perigo da hecatombe nuclear.
As críticas contidas no livro ultrapassam a guerra fria e tocam
muito bem no imperialismo. É justamente neste mesmo período de
guerra fria que vários países do terceiro mundo (em especial na
África) estão na luta pela independência com vistas em se
recuperarem da destruição causada pelos invasores europeus. A
lógica imperialista é algo muito particular aos europeus, apesar de
elementos sangrentos em outros povos, o desejo de dominação e
reconstrução de uma sociedade em um local distante, é algo bem
específico e singular. Este desejo colonizador é comum em nossas
narrativas, seja quando nós vamos até eles ou quando eles vêm até
nós (uma invasão alienígena, por exemplo). Dominar, construir,
transferir, não repetir os erros, usar este território descoberto
como uma possível folha em branco, ignorando a vida ali existente.
Bradbury monta seu texto com base neste desejo incontido de dominar,
subjugar e moldar uma outra sociedade a “nossa” maneira. O
colonialismo é o episódio mais famoso deste pensamento destruidor e
intolerante, mas se olharmos para a guerra fria, perceberemos que as
intervenções diretas em lugares como Vietnã, Budapeste ou América
Latina, estão intimamente ligados a este desejo dominador. Acredito
que o autor pode servir de apoio para uma reflexão que busca evitar
esta postura política, tão marcada em nossa forma de pensar. Afinal
de contas, é uma destruição consciente de elementos tão ricos,
como o que fizeram com os africanos, em especial os escravizados, que
tiveram suas culturas amassadas a ponto de tratarmos vários grupos
tão distintos de uma mesma maneira. A pluralidade não é algo novo,
o multiculturalismo é algo mais atuante do que se afirma, por isso
ainda é importante buscar essa reflexão, mais tolerante e menos
assassina.
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